São Paulo, domingo, 02 de outubro de 2005

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Caos ajudou a alimentar mitos em Nova Orleans

JIM DWYER
CHRISTOPHER DREW

DO "NEW YORK TIMES", EM NOVA ORLEANS

Depois da tempestade, veio o cerco.
Nos dias que se seguiram à passagem do Katrina, Nova Orleans foi tomada pelo clima de terror provocado por crimes testemunhados ou não, reais ou frutos de rumores. Os temores modificaram o envio de tropas, adiaram retirada de pessoas por motivos médicos, levaram policiais a abandonar seus postos e impediram helicópteros de decolar.
O superintendente de polícia da cidade, Edwin P. Compass 3º, disse que turistas estavam sendo assaltados e estuprados nas ruas. A situação de carência absoluta nos dois principais abrigos da cidade -o centro de convenções e o Superdome- foi agravada, segundo as autoridades, pela presença de bandos de malfeitores que violentavam mulheres e crianças.
Mas uma revisão das evidências disponíveis hoje mostra que algumas das histórias mais alarmantes que percorreram a cidade parecem ser pouco mais do que fruto da imaginação de pessoas assustadas, produto de circunstâncias infernais que incluíam a ausência de comunicações confiáveis e também, possivelmente, resíduo de um longo histórico de relações complicadas entre alguns integrantes da força policial e uma parte do público.
O superintendente Compass, uma das poucas fontes aparentemente bem informadas nos dias que se seguiram ao furacão, pediu demissão de seu cargo na terça-feira, por motivos ainda não claros. Sua saída aconteceu justamente quando ele vinha sendo criticado pelo jornal "New Orleans Time-Picayune", que questionou muitos dos relatos que Compass fez sobre casos de violência extrema.
Talvez nunca seja possível fazer uma crônica completa dos crimes daquela semana, os que de fato ocorreram e os que foram denunciados, porque tantas funções básicas do governo foram suspensas no início da semana, entre elas os registros de segurança pública.
Mesmo entre as pessoas que diziam ter estado no mesmo lugar no mesmo momento, as recordações de umas e outras nem sempre são iguais. Por exemplo, um líder da equipe SWAT da polícia afirmou que sua equipe várias vezes procurou os autores de disparos de armas no centro de convenções. Mas várias pessoas retiradas do local disseram que em nenhum momento ouviram tiros sendo disparados ali.
O que fica claro é que boatos sobre crimes em vários casos exerceram papel importante na reação dos serviços de emergência, um papel tão importante quanto os casos reais de desordem pública. Uma equipe de paramédicos foi impedida de entrar em Slidell -situada do outro lado do lago Pontchartrain, em relação a Nova Orleans- durante quase dez horas, em razão da denúncia feita por um policial estadual de que uma turba de pessoas armadas teria confiscado barcos e estaria fazendo desordem.
No fim, segundo Farol Champlin, paramédico da ambulância Acadian, constatou-se que o que havia de fato eram dois homens fugindo de suas ruas inundadas.
Diante de relatos de que 400 a 500 saqueadores armados estariam avançando sobre a cidade de Westwego, dois policiais abandonaram seus postos imediatamente. Os saqueadores nunca chegaram a aparecer, disse o chefe de polícia de Westwego, Dwayne Munch, que comentou: "Boatos são capazes de derrubar um exército inteiro".
Durante os seis dias nos quais o Superdome foi usado como abrigo, o chefe da unidade de crimes sexuais do Departamento de Polícia de Nova Orleans, tenente David Benelli, disse que ele e seus policiais viveram dentro do ginásio e investigaram todas as denúncias de estupro e atrocidades.
No final, fizeram duas prisões por tentativa de agressão sexual. Eles concluíram que os outros ataques simplesmente não aconteceram.
"Acho que foi um mito urbano", disse Benelli, que também dirige o sindicato dos policiais. "Você coloca 25 mil pessoas debaixo do mesmo teto, sem água corrente, eletricidade ou informações, e as histórias começam a se espalhar."
De acordo com o que muitas pessoas recordam, os crimes reais e graves começaram antes da catastrófica ruptura das barragens, levando à inundação da cidade, e eles foram em sua maioria crimes de oportunidade e não de agressão. De acordo com o capitão Anthony Canatella, comandante da polícia no Sexto Distrito, os saqueadores atacaram na meia hora, mais ou menos, durante a qual o olho do furacão Katrina caiu sobre a cidade -um momento ilusório de sol e brisas agradáveis.
Usando uma corrente presa a um carro, eles arrombaram as portas de aço dos fundos de uma loja de penhores chamada Cash America, na Claiborne Avenue. "Não havia nada lá dentro de primeira necessidade", disse Canatella. "Apenas armas e ferramentas elétricas."
O Sexto Distrito -que, como boa parte de Nova Orleans, é um verdadeiro tabuleiro de xadrez de riqueza e pobreza- foi palco de boa parte dos saques maiores, sendo boa parte deles limitados aos bairros de baixa renda. Um dos alvos principais foi a loja Wal-Mart na rua Tchoupitoulas, que faz divisa com o elegante Garden District.
Os saqueadores disseram a um repórter do "Times" que seguiram policiais para dentro de uma loja arrombada pela polícia. Os comandantes da polícia disseram que tinham sido autorizados a pegar o que precisavam para sua sobrevivência. Mas um jornalista do "Times-Picayune" disse que viu policiais pegando DVDs.
Teve início um frenesi de roubos, e os frutos de tudo isso puderam ser vistos na semana passada em três contêineres estacionados diante da delegacia de polícia do Sexto Distrito. Dentro deles havia produtos recuperados, que haviam sido guardados pelos saqueadores em casas espalhadas pelo bairro, segundo Canatella. Alguns, mas não todos, ainda portavam etiquetas do Wal-Mart. Entre eles havia um computador ainda em sua caixa, garrafas de conhaque, embalagens de fraldas e de leite infantil, um aparelho de massagens recarregável, um aparador de grama, caixas de copos e pilhas de DVDs. "Não foi roubado um único objeto educativo", comentou Canatella. "Os livros continuavam exatamente em seus lugares. Mas todos os relógios de US$ 9 da loja sumiram."
Um dos policiais que foram ao Wal-Mart disse que a polícia não procurou impedir as pessoas de levar comida e água. "As pessoas que estavam sentadas diante do Wal-Mart com comida e água, esperando uma carona, eu deixei ali mesmo", contou o sargento Dan Anderson, do Sexto Distrito. "Se estavam carregando produtos eletrônicos, eu colocava os produtos de volta na loja."


Tradução de Clara Allain

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