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NOVA YORK
"Ilha dos Mortos" exala o cheiro do 11 de setembro
SÉRGIO DÁVILA
DE NOVA YORK
Quanto mais distante fica 11 de
setembro, menos importantes para as identificações vão se tornando os escombros do World Trade
Center, em Manhattan. Por ordem do prefeito Rudolph Giuliani, o local do ataque terrorista,
que já foi chamado de "a maior
cena de crime do mundo", viu o
pessoal de resgate sair para dar lugar ao maquinário pesado de remoção de entulho.
Aos poucos, o foco muda para
outro sítio, mais ao sul, na verdade numa outra ilha, a meio caminho entre a cidade e a boca do
oceano Atlântico. Trata-se do ex-depósito de lixo de Fresh Kills, em
Staten Island, uma das cinco regiões administrativas de Nova
York, para onde está sendo levado tudo que é retirado das ruínas.
Em inglês, "Fresh Kills" quer dizer "presas frescas", mas não vem
daí a origem do nome do ex-esgoto aberto. Na verdade, as palavras
são holandesas e significam "rio
de água doce". Desde 11 de setembro, no entanto, o pessoal que trabalha aqui chama o lugar de "Ilha
dos Mortos".
Pedaços de corpos
"Outro dia achei um dedo indicador no meio de pedaços de concreto", disse à Folha o policial
aposentado Joseph Pirrello, 68,
que mora em Staten Island e trabalha nas buscas há dois meses.
Não ficou chocado? "Chocado?
Nem sei mais o que pensar."
Esse é seu papel. Procurar por
pedaços de corpos, qualquer pedaço, que será enviado para um
médico-legista, que tentará identificá-lo por sinais evidentes (uma
tatuagem, uma cicatriz, um anel)
ou por DNA. Do ataque até agora,
Nova York já expediu 2.283 atestados de óbito, dos quais menos
de mil baseados em corpos achados. Segundo a prefeitura, há
3.682 vítimas. É a diferença entre
os dois números que Pirrello e
seus colegas tentam achar no lixo.
Ele acorda todos os dias cedo,
vai a pé até o depósito e antes das
9h já está vestido de macacão impermeável branco, luvas de borracha, máscara antiodor, protetor
de vista e capacete, cavoucando o
que os caminhões acabaram de
despejar. Não é fácil.
A cada vez que quer ir ao banheiro, por exemplo, o ex-detetive tem de passar por uma tenda
de descontaminação, despir-se de
todo o aparato, que será jogado
fora (à exceção do capacete), lavar
as mãos e o rosto com um desinfetante forte e ser inspecionado
por um médico que checará se ele
tem cortes. O mesmo ocorre no
almoço e antes de ir embora.
A visão do lugar já era impressionante antes mesmo do ataque
terrorista, com seus urubus sobrevoando e o gás metano que escapa do solo. Fresh Kills foi o
principal depósito de lixo de Nova
York por 53 anos. Tem três vezes
o tamanho do Central Park e funcionou até março deste ano,
quando, depois de décadas de
protesto, a população local conseguiu sensibilizar a prefeitura.
Um dia, a região vai virar um
parque. Pelo menos é o projeto
original, de antes da queda do
World Trade Center. Depois, todo aquele terreno já preparado
pareceu irresistível para o prefeito
Rudolph Giuliani, que autorizou
que o que fosse retirado das ruínas fosse levado para lá. O conteúdo chega em barcas municipais
que descem o rio Hudson.
A busca não é só de restos humanos. Disquetes amassados, fotografias rasgadas, pedaços de
cartões de crédito e até micropartes de roupas são recolhidos. Uma
tíbia, como a que Pirrello lembra
ter achado outro dia. Qualquer
coisa que prove que tal ou qual
pessoa estava lá no exato momento da queda das torres.
Tudo vai ser usado depois como
evidência num tribunal, para provar que alguém realmente morreu -e, consequentemente, que
sua família tem direito ao atestado de óbito, ao seguro de vida, à
indenização. É a única maneira
para muitos parentes, já que, devido à natureza do ocorrido, muitos corpos viraram cinza ou foram totalmente destruídos.
"Se grande parte do concreto virou pó, calcule o que aconteceu
com as pessoas", diz Pirrello. Segundo James Luongo, policial responsável por Fresh Kills, a busca
serve menos para achar alguma
evidência que vá fazer diferença
nas investigações do que para
mostrar às famílias que os restos
de seus entes queridos não estão
sendo simplesmente jogados
num buraco, junto do lixo.
"É preciso demonstrar que há
um processo lógico, um protocolo", disse Luongo. Todo o processo é inédito por suas proporções,
tanto na história da polícia quanto na do equivalente local do Instituto Médico Legal. Afinal, são
1,2 milhão de toneladas de entulho, das quais apenas um terço já
foi retirado de Manhattan.
Esteiras rolantes
Até agora, os 800 homens que
trabalham lá em turnos de 12 horas por dia, sete dias por semana,
já acharam 2.000 pedaços de corpos e cerca de 1.500 objetos pessoais. Eles trabalham com esteiras
rolantes, peneiras automáticas e
separadores de objetos parecidos
com os usados em mineração.
Para estimulá-los, há cartazes
com o nome das pessoas que já
foram identificadas graças aos esforços da equipe da Ilha dos Mortos. E há também os "escavadores
especiais", como se referem os
policiais que trabalham lá.
São agentes do FBI e do serviço
secreto que se concentram num
monte distinto de entulho, de
acesso proibido ao restante da
equipe. São os escombros do prédio do World Trade Center onde
funcionava um andar inteiro do
serviço de inteligência da CIA, até
então escondido sob a fachada de
um outro órgão federal.
Os outros, abertos a todos, carregam cartazes como "ossos de
animais" (sim, cachorros, gatos e
aves também morreram naquele
dia), "sapatos" (há milhares deles,
um dos artigos que sofreram menos com a destruição, segundo os
policiais) e "objetos pessoais", como uma caixa de convites de casamento fechada, uma peruca de
cabelos negros ou uma escova de
dentes rosa.
"Mas o pior de tudo é mesmo o
cheiro", disse um dos policiais,
Tony Rivera. É só fazer os cálculos: são mais de cinco décadas de
lixo que foram misturadas a entulho que traz restos humanos de já
quase três meses de idade. "Isso
entra pelo nariz e gruda na garganta para sempre."
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