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São Paulo, quinta-feira, 03 de abril de 2003

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ARTIGO

Que venha a revolução

THOMAS L. FRIEDMAN
DO "NEW YORK TIMES", NO CAIRO

Quem lê a imprensa árabe imagina que o mundo árabe inteiro esteja enfurecido com a invasão americana do Iraque, e, até certo ponto, isso é verdade. Mas há algo que não se lê na imprensa: por baixo da raiva também existe uma curiosidade cética e hesitante -a curiosidade em saber se os americanos realmente farão o que prometem, ou seja, construir um Iraque novo e mais livre.
Embora talvez não consigam descrevê-lo, muitos árabes intuem que esta invasão norte-americana do Iraque é algo que nunca antes viram -o lado revolucionário do poder dos EUA.
Permita que eu explique: para os árabes, a cultura americana -desde o blue jeans até "Baywatch"- sempre foi revolucionária, mas o poderio americano, desde a Guerra Fria, é usado apenas para conservar o status quo nos países árabes, mantendo no poder reis e autocratas árabes que sejam amigáveis aos EUA.
Mesmo depois de terminada a Guerra Fria e depois de os EUA terem apoiado e comemorado o florescer da democracia que aconteceu desde o Leste Europeu até a América Latina, o mundo árabe ficou de fora. Nesta região, em razão do desejo dos Estados Unidos de uma oferta constante de petróleo e de segurança para Israel, os EUA continuaram a apoiar o status quo e qualquer governo árabe que o preservasse.
De fato, a primeira Guerra do Golfo buscou apenas expulsar Saddam Hussein do Kuait para restaurar a monarquia kuaitiana e o fluxo de petróleo desse país. Isso feito, os Estados Unidos deixaram Saddam Hussein em paz.

Choque
É por esse motivo que a segunda Guerra do Golfo está sendo um choque tão grande para o pensamento árabe -algo comparável à invasão do Egito por Napoleão ou à Guerra dos Seis Dias. Mas pessoas diferentes se chocam de maneiras diferentes.
Para começar, há o choque sentido pelos liberais árabes, ainda uma minoria muito pequena, que não conseguem acreditar que os EUA tenham finalmente aplicado seu poder revolucionário no mundo árabe. Eles querem desesperadamente que a invasão americana dê certo, porque acham que o Iraque é grande demais para ser ignorado e que, portanto, uma eleição para valer no Iraque seria capaz de sacudir a região árabe inteira.
Em segundo lugar, há o choque dos árabes que formam a maioria silenciosa. Eles reconhecem que estão vendo o lado revolucionário do poderio norte-americano, mas o enxergam através de sua própria narrativa, que diz que os EUA está tumultuando o status quo não para erguer o mundo árabe, mas para arrastá-lo para baixo, de modo que se submeta a qualquer coisa que os EUA e Israel possam querer exigir.
É este o tema dominante na imprensa árabe: a idéia de que esta guerra não passa, na verdade, de uma versão nova do colonialismo e do imperialismo.
A rede de televisão Al Jazeera, quando descreve as ações americanas no Iraque, utiliza os mesmos termos com os quais narra as ações israelenses na Cisjordânia: diz que o Iraque se encontra sob "ocupação" norte-americana e que os iraquianos mortos são "mártires".
Como observou Raymond Stock, que vive no Cairo há muitos anos e é biógrafo do romancista egípcio Naguib Mahfouz, "as pessoas aqui, especialmente a população que assiste aos canais árabes via satélite, são muito mais bem desinformadas do que você imagina".
"De modo geral, a imprensa árabe lhes diz o que querem ouvir e lhes mostra o que querem ver. Existe uma narrativa que é profundamente "implantada", e jornalismo nenhum feito por repórteres "implantados" do outro lado vai mudá-la. Apenas um Iraque diferente poderá mudar isso", afirma Stock.
Mas existe uma terceira linha de pensamento: a das autoridades egípcias, que são instintivamente pró-americanas, mas estão chocadas pelo fato de a equipe Bush se dispor a utilizar seu poderio revolucionário para tentar remodelar o Iraque.
As autoridades egípcias vêem essa tentativa como inútil, porque, para elas, o Iraque é um país tribal, congenitamente dividido, que só pode ser governado com mão de ferro.

Sorriso
Qual visão vai acabar revelando ser a mais acertada depende de como a situação se desenrolar no Iraque -e, acredite, todo o mundo está atento para isso.
Passei a tarde numa aula de estudos americanos na Universidade do Cairo. O professor, Mohammed Kamel, resumiu o clima dominante: "Em 1975, Richard Nixon veio para o Egito, e o governo levou enormes multidões para as ruas. Alguns americanos zombaram de Nixon por isso, e Nixon se defendeu, dizendo: "Você pode obrigar as pessoas a sair às ruas e dar as boas-vindas a um líder estrangeiro, mas não pode obrigá-las a sorrir".".
"É possível que, com o tempo, os iraquianos parem de opor resistência aos EUA. Mas isso não fará esta guerra ser legítima. O que os Estados Unidos precisam é levar os iraquianos a sorrir. Se vocês conseguirem isso, as pessoas vão considerar esta invasão um sucesso", continuou o professor.
Há muita coisa em jogo nesse sorriso, disse Kamel, porque esta é a primeira "guerra árabe-americana". Não se trata de árabes e israelenses, desta vez. Trata-se de os EUA entrarem no mundo árabe -entrarem não apenas com seu poderio ou cultura, mas com seus ideais. É uma guerra em torno daquilo que os EUA representam.
"Se ela der errado", concluiu Kamel, "se vocês não cumprirem o que prometeram, isso terá um impacto realmente grande. As pessoas não apenas dirão que a política dos EUA é errada, mas que suas idéias são falsas, que os americanos não acreditam de fato nelas ou não sabem como colocá-las em prática".
Em outras palavras, precisamos concluir a paz melhor do que iniciamos a guerra.


Tradução Clara Allain


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