São Paulo, sábado, 03 de junho de 2006

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ARTIGO

Quem sabe que horrores já foram cometidos?

Será que o escândalo de Haditha, em que militares americanos são acusados de massacrar civis iraquianos, representa apenas a ponta de uma vala coletiva?

ROBERT FISK
DO "INDEPENDENT"

Podem os corpos que vislumbramos, as imagens granulosas de cadáveres e as crianças mortas ser apenas alguns poucos entre muitos outros? Será que o trabalho do Exército americano das favelas vai além disso? Me recordo claramente do primeiro momento em que suspeitei que assassinatos hediondos poderiam estar ocorrendo em nosso nome no Iraque. Eu estava no necrotério de Bagdá, contando cadáveres, quando um dos altos funcionários médicos da cidade me falou de seus temores. "Todo o mundo traz corpos para cá", disse ele. "Mas, quando os americanos trazem corpos, somos instruídos a não fazer autópsias, sob hipótese nenhuma. Somos dados a entender que isso já foi feito. Às vezes recebemos um papel como esse, acompanhando o corpo." E ele me entregou um documento militar americano com o esboço traçado à mão do corpo de um homem e as palavras "ferimentos traumáticos". Que tipo de trauma? De fato, que tipo de trauma está sendo vivido no Iraque? Exatamente quem está cometendo as matanças em massa? Quem vem despejando tantos cadáveres nos lixões? Depois de Haditha, vamos rever nossas suspeitas. Não adianta dizer que são "algumas maçãs podres". Todos os Exércitos de ocupação são corrompidos. Mas será que todos cometem crimes de guerra? Os argelinos ainda encontram valas comuns deixadas por militares franceses que dizimaram povoados. Sabemos de estupradores e assassinos do Exército russo na Tchetchênia. Todos nós já ouvimos falar do Domingo Sangrento. Os israelenses ficaram sentados, assistindo, enquanto a milícia libanesa que atuava com sua procuração massacrava e eviscerava 1.700 palestinos. E, é claro, as palavras "My Lai" vêm sendo proferidas novamente. Sim, os nazistas foram muito piores. E os japoneses. E os "ustashe" croatas. Mas estes somos Nós. Este é Nosso Exército. Esses jovens soldados são nossos representantes. E eles têm as mãos sujas de sangue inocente. Desconfio que parte do problema é que nunca nos preocupamos realmente com os iraquianos -que é por isso que nos recusamos a contar seus mortos, contabilizando apenas nossas próprias baixas. E, a partir do momento em que os iraquianos se voltaram contra o Exército de ocupação com suas bombas de beira de estrada e seus carros-bomba suicidas, eles se transformaram na versão árabe dos "gooks", os subumanos covardes, assassinos e malévolos que os americanos enxergavam no Vietnã. Convença um presidente a nos dizer que estamos combatendo o mal, e um dia podemos acordar e descobrir que uma criança tem chifres na cabeça e cascos em lugar de pés. Lembre a você mesmo que essas pessoas são muçulmanas, que todas elas podem transformar-se em pequenos Mohammed Attas. De certo modo, nós, jornalistas, temos culpa no cartório. Impossibilitados de nos aventurar para fora de Bagdá -ou mesmo dentro da própria Bagdá-, a imensidão do Iraque caiu sob uma sombra espessa, que tudo oculta. Por medo da faca do insurgente, não podemos mais investigar. E os americanos gostam que seja assim. Quem sabe que horrores não terão sido cometidos lá longe, no meio da areia? Acho que esse tipo de coisa vira um "hábito". Os horrores de Abu Ghraib já estão sendo esquecidos, menosprezados com um dar de ombros. Oh, aquilo! Foi abuso, não tortura. E então, de repente, aparece nos EUA um oficial de baixa patente acusado de matar um general do Exército iraquiano, empurrando-o dentro de um saco de dormir, de cabeça para baixo, e sentando-se sobre seu peito. E, novamente, o fato faz poucas manchetes. Quem se importa com a morte de mais um iraquiano? Por acaso eles não estão tentando matar nossos rapazes, que estão ali fora combatendo o terror? Quem pode ser responsabilizado, quando nós nos vemos como as mais inteligentes e mais honradas das criaturas, interminavelmente combatendo os assassinos de 11 de setembro ou 7 de julho porque amamos tanto o nosso país e nosso povo -mas não tanto os outros povos? Assim, nos vestimos de Galahad -sim, de cruzados- e dizemos àqueles cujos países invadimos que vamos levar democracia. Não posso deixar de me perguntar hoje quantos dos inocentes massacrados em Haditha aproveitaram a chance de votar nas eleições iraquianas -antes de serem assassinadas por seus "libertadores".


Tradução de CLARA ALLAIN

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