São Paulo, quarta-feira, 03 de agosto de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

Realeza saudita depende do wahabismo

Amr Nabil/Associated Press
O corpo do rei saudita Fahd é carregado por parentes antes da prece especial feita ontem em mesquita de Riad, que contou com um superesquema de segurança


ROBERT FISK
DO "INDEPENDENT"

Vínhamos dizendo havia anos que o rei Fahd iria morrer -no enorme palácio de sua família na Andaluzia (ele sabia, é claro, que essa região no passado integrou um belo império árabe), em um de seus fantásticos e exagerados aviões a jato, com seu interior projetado para parecer uma tenda árabe, ou, ainda, naquela piscina de fama medonha. As autoridades insistiam em dizer que ele sofria de pneumonia e febre alta. Qualquer outra coisa não passava de "especulações mal-intencionadas" -o que significava que era verdade.
Entretanto esse foi o homem que financiou as legiões árabes para combater a invasão soviética do Afeganistão, em 1979, quando, como sabemos, Osama bin Laden assumiu o papel de "príncipe" porque os verdadeiros príncipes de Fahd preferiram os bares de Mônaco ou as prostitutas de Paris a empunhar a espada em defesa de uma religião cujos maiores santuários, Meca e Medina, ficam em terras sauditas.
Foi esse mesmo Fahd quem levou a ira de Bin Laden e de sua Al Qaeda a cair sobre o golfo árabe -e, algum tempo depois, sobre os EUA- ao pedir aos EUA o envio de tropas para proteger a terra do profeta após a invasão do Kuait por Saddam Hussein, em 1990. E seu destino poderia ter sido o de morrer assassinado, há tempos, não fosse o fato de que é difícil assassinar um homem que já está morto.
Foi esse o rei que abriu seus cofres imensos para ajudar Saddam Hussein na guerra contra Irã, fazendo questão de não dizer nada sobre a morte por gás de até 60 mil soldados e civis iranianos durante esse conflito, na esperança de que a Besta de Bagdá (que, na época -desnecessário dizer-, era nosso aliado) derrubasse outra besta muito mais terrível, o revolucionário aiatolá Ruhollah Khomeini.
Quando Saddam chegou ao Kuait, Fahd lhe escreveu uma carta fazendo-o lembrar até que ponto a Arábia Saudita contribuíra para sua guerra brutal contra o Irã. "Ó Governante do Iraque", escreveu Fahd, "o Reino deu a seu país US$ 25.734.469.885,80". Mas os banqueiros de Fahd calcularam que gastaram US$ 27,5 bilhões para pagar pela libertação do Kuait pelos EUA -um pouco mais do que haviam pago a Saddam.
Foram Fahd e os paquistaneses que, em nome dos EUA, ajudaram a armar as milícias afegãs contra a União Soviética e depois, desgostosos com as disputas entre os vitoriosos, apoiaram o exército wahabita de clérigos camponeses farisaicos liderados pelo mulá Omar, o Taleban. Sob a égide de Fahd, o Reino despejou milhões de dólares nas madrassas do Paquistão, que voltaram a figurar nos noticiários desde 7 de julho. Como alguns dos homens-bomba de Londres, o Taleban foi produto autêntico do wahabismo, essa religião estatal islâmica rígida, pseudo-reformista, vigente na Arábia Saudita e fundada no século 18 pelo clérigo Mohamed Ibn Abdul Wahab.
Ainda não se estudou plenamente o papel da Arábia Saudita, sob a liderança nominal de Fahd, nos crimes contra a humanidade cometidos em 11 de setembro de 2001. Embora integrantes do primeiro escalão da família real, especialmente o então príncipe herdeiro Abdullah -que nunca se convenceu tanto quanto Fahd do acerto da política externa norte-americana no Oriente Médio- tenham expressado o choque e horror obrigatórios e esperados deles, nenhuma tentativa foi feita para analisar a natureza do wahabismo e seu desprezo inerente por toda representação da atividade humana ou da morte.
A destruição dos dois Budas gigantes de Bamian pelo Taleban, em 2000, e o vandalismo cometido no museu de Cabul combinam perfeitamente com essa visão teocrática do mundo. E pode-se argumentar que as torres gêmeas do World Trade Center também.
Em 1820, as estátuas de Dhu Khalasa, que datavam do século 12 e eram adoradas por muitos, foram destruídas por wahabitas. No final dos anos 90, semanas apenas depois de o professor libanês Kamal Salibi ter sugerido que antigos povoados judaicos na atual Arábia Saudita poderiam ter sido os locais onde aconteceram fatos da Bíblia, Fahd enviou máquinas de terraplanagem para destruir as construções antigas dessas cidades.
Em nome da religião, as autoridades religiosas sauditas já destruíram centenas de estruturas históricas em Meca e Medina. Ex-funcionários da ONU condenam a destruição de edifícios otomanos na Bósnia por uma organização humanitária saudita financiada pelo governo de Fahd, que afirmou que os edifícios eram "idólatras".
Assim, toda a conversa sobre príncipes "inquietos", sobre potenciais rivalidades entre meios-irmãos, agora que Fahd está morto, tem uma espécie de pseudo-importância apenas. A sociedade saudita não é e não poderá ser uma sociedade "moderna", no sentido que nós atribuímos ao termo, enquanto o poder for do wahabismo. Mas o wahabismo precisa continuar no poder -para proteger o rei. E, como a Arábia Saudita vem, cada vez mais, se tornando um país pobre, as autoridades wahabitas e a polícia religiosa se fortalecem.
Tradução de Clara Allain

Texto Anterior: Oriente médio: Corpo de Fahd é enterrado em cova sem nome
Próximo Texto: Rússia: Putin proíbe TV ABC de trabalhar no país
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.