São Paulo, domingo, 03 de outubro de 2004

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GUERRA SEM LIMITES

Para Jason Burke, fazer da Al Qaeda "um grupo a ser destruído" omite o fato de que se trata de uma ideologia

Ocidente não entende Al Qaeda, diz analista

ÉRICA FRAGA
DE LONDRES

Al Qaeda não é um grupo unificado, resultado do trabalho de um homem. O termo significa "a base" e está relacionado a uma forma de ver o mundo, crenças religiosas e aspirações sobre o futuro. Por ter ignorado isso, os governos ocidentais, na luta contra o terror, estão muito mais longe de suas metas do que Osama Bin Laden está do seu objetivo.
Essa confusão semântica e os riscos de suas conseqüências levaram o jornalista britânico Jason Burke, 34, a escrever o livro "Al Qaeda", recém-lançado no Reino Unido. Burke -que foi correspondente no Oriente Médio, no Paquistão e no Afeganistão- diz que os governos ocidentais e muçulmanos tiveram todos os elementos para entender as causas reais da militância islâmica e sua complexidade, mas preferiram se agarrar à idéia simples, mas falsa, de "um grupo a ser eliminado".
No livro, Burke-que está virando referência sobre o assunto, citado por veículos importantes como a revista "Economist" -afirma que "os serviços de inteligência mentem, trapaceiam e enganam". Leia a seguir os principais trechos da entrevista do jornalista, que é repórter-chefe do "Observer", à Folha.

 

Folha - O sr. diz que governantes não compreenderam o verdadeiro sentido da Al Qaeda. Quais têm sido as conseqüências disso?
Jason Burke -
Você não pode elaborar estratégias efetivas para lidar com a ameaça da militância islâmica moderna a menos que você a entenda. E, por um longo período, muita gente -no governo, na mídia e nos serviços de segurança- entendeu a Al Qaeda como um único, unificado, hierárquico grupo terrorista governado por apenas um homem e responsável por grande parte da violência islâmica hoje em dia. Isso é errado. A Al Qaeda é algo muito diferente, é um modo de ver o mundo, uma ideologia, uma forma de entender a história, são aspirações em relação ao futuro.

Folha - Os serviços de inteligência e os governos poderiam entender melhor a militância islâmica?
Burke -
Claro que sim. Mas preferiram uma formulação mais simples. Primeiro, porque há uma espécie de conservadorismo institucional. Quando confrontadas com um problema, as pessoas tendem a reagir tentando alcançar o conjunto de referências mais familiares e próximas e, nesse caso, estão relacionadas a ameaças mais antigas de terrorismo.
A outra razão é que ter grupos terroristas únicos, coerentes e simples serve aos governos e às instituições. Permite que culpem um único agente de forma que pareça que, se você eliminar aquela pessoa, o problema está resolvido. Também significa que você não tem de olhar para causas reais dos problemas que, em sua maioria, são muito desconfortáveis para um governo.
Do ponto de vista da lei, é fácil dizer que os militantes são parte de um grupo terrorista porque é vínculo suficiente para prendê-los. O problema é que ninguém pode ser membro da Al Qaeda, porque Al Qaeda não é um grupo.

Folha - Essa percepção sobre o que é Al Qaeda vem mudando?
Burke -
Eu acho que a forma como a Al Qaeda é descrita mudou nos últimos três anos. As pessoas começam a entender que, quando se fala de Al Qaeda, se quer dizer Bin Laden e outros.

Folha - E os grupos terroristas mudaram?
Burke -
Houve uma grande mudança desde 2001. Até esse período, Bin Laden exercia uma influência significativa, conseguindo reunir pessoas no Afeganistão. Muitos extremistas estavam em ação no Afeganistão, com condições de lançar campanhas terroristas no mundo. Essa presença quase sumiu. Mas, agora, há uma internacionalização da ideologia islâmica radical. No período inicial, ela estava focada nos Estados nacionais. Agora, temos a guerra ao terror que radicalizou uma quantidade enorme de gente.

Folha - O sr. diria que a guerra ao terror fez a situação piorar?
Burke -
Bem, era preciso atacar o problema no Afeganistão. Não dava para permitir que uma situação em que vários terroristas dispostos a seguir promovendo treinos militares no país persistisse. O fato de se ter permitido que isso surgisse já era ruim o suficiente.
Mas, porque o significado da Al Qaeda não foi reconhecido antes, a estratégia que foi perseguida não tentou conter os planos de Bin Laden, que eram de radicalizar e mobilizar pessoas no Oriente Médio. Na verdade, a guerra ao terror e, particularmente, a invasão do Iraque têm ajudado e facilitado esse processo.

Folha - Que políticas diferentes poderiam ter sido tomadas?
Burke -
Vamos imaginar que, depois da Guerra do Afeganistão, os americanos tivessem concluído que eles limparam os campos no Afeganistão e que, então, caminhariam para a segunda fase da guerra, que envolveria assistência aos governos locais, aumento de cooperação entre os serviços de inteligência.
Vamos supor que tivessem pego a enorme quantidade de dinheiro que a Guerra do Iraque custou e a direcionado para diplomacia -melhorar a imagem dos EUA-, para financiar o desenvolvimento na Palestina, financiar o desenvolvimento de um sistema educacional secular no Paquistão, desenvolver energias alternativas para reduzir a dependência do petróleo.
E que tivessem abordado um tema fundamental que é o fato de que o islã, como religião, cultura e forma de viver, está sendo atacado. E vamos imaginar que não tivessem invadido o Iraque. Aí teríamos o problema em um nível administrável.

Folha - Mas isso não ocorreu.
Burke -
Sim, e, no balanço final, se você olhar o objetivo de Osama bin Laden cinco anos atrás, que era mobilizar e radicalizar a maior quantidade de pessoas possível no Oriente Médio, e olhar nossos objetivos, que têm sido administrar as ameaças de terrorismo, de forma que não prejudiquem nosso modo de viver, nossas culturas e sociedades, então, acho que é bastante claro que Bin Laden e pessoas como ele estão mais próximas de seus objetivos do que nós dos nossos.

Folha - Como conter o terrorismo islâmico?
Burke -
A melhor coisa é o fato de que a maior parte das pessoas no mundo islâmico não gosta do terrorismo, tem vergonha e acha que a religião deles tem sido usada de forma errada.
É preciso incentivar os muçulmanos moderados, em vez de tornar o trabalho deles mais difícil.


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