São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

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ORIENTE MÉDIO

Em votação que interessa à UE, aos EUA e ao FMI, o favorito é identificado com o islã e quer dar as costas à Europa

Eleição turca volta a opor Oriente a Ocidente

RODRIGO UCHÔA
DA REDAÇÃO

O sultão otomano Mehmet 2º, conquistador de Constantinopla, sob os dizeres "Istambul desde 1453". Essa faixa dos torcedores do Fenerbahçe na partida de quinta-feira pela Copa da Uefa de futebol contra o Panathinaikos, de Atenas, mostra mais do que uma simples provocação: explicita o choque de Ocidente e Oriente que é tão presente na sociedade turca e que deve aflorar mais ainda na eleição parlamentar de hoje.
Em jogo, nos votos de 41 milhões de eleitores, a escalação de 550 parlamentares -e, consequentemente, a do novo premiê.
Como favorito, o recém-fundado Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP, ou simplesmente AK, sigla que em turco forma a palavra limpo), acusado por detratores de ser secular por fora, mas comprometido com movimentos islâmicos por dentro.
Como espectadores -às vezes mais do que espectadores-, os militares turcos, os EUA, a União Européia, os Bálcãs, o Oriente Médio, a Rússia e até o FMI.

UE e crise econômica
As referências à Constantinopla de cultura greco-ortodoxa sendo derrotada no século 15 pelos muçulmanos não foi a única provocação no estádio de Istambul: os torcedores do Panathinaikos levaram uma bandeira com o mapa da Grécia incluindo Chipre, foco de tensão entre Atenas e Ancara.
Isso não pareceu atingir os chanceleres grego e turco, George Papandreou e Sukru Sina Gurel, assistindo à peleja lado a lado.
A Grécia, que chegou à beira da guerra com o vizinho por três vezes nos últimos 30 anos, hoje defende iniciar negociações para a admissão do antigo rival na UE. Protestou quando a Turquia foi excluída da lista de dez países que devem aderir ao bloco em 2004.
Mas o líder do AK, o carismático ex-prefeito de Istambul Recep Erdogan, afirma que o país não precisa da UE. Com fama de incorruptível, ele atrai os votos de uma maioria desiludida com escândalos políticos e com a crise econômica que mantém 2 milhões de turcos desempregados.
"E ter um partido identificado com ideais islâmicos não o faz perder votos com o grosso da população, apenas com a elite ocidentalizada", afirma Nursulan Surayev, cientista político.
Procurando aceitação do Ocidente e dos "ocidentalizados", Erdogan adotou um discurso econômico moderado. Fala em manter o acordo feito com o FMI após a crise bancária e cambial que quase levou o país à bancarrota em 2001. Prega apenas alguns ajustes para projetos sociais.
Mas o partido, se vencedor, teria ainda de convencer os militares de que não implantaria um governo islâmico. As Forças Armadas ocupam um espaço especial no jogo de poder desde antes de o país se tornar uma república, em 1923. Seis dos dez presidente foram militares -como o fundador da república, Mustafá Kemal "Ataturk" (pai dos turcos).
Nos últimos 40 anos, houve quatro golpes de Estado comandados pelo Exército, bastião da secularidade. A própria Constituição diz que "nenhuma garantia será estendida a pensamentos e opiniões contrários aos interesses nacionais". Essa formulação é vaga o bastante para abarcar conceitos como a indivisibilidade do país e os valores morais e a modernidade instituída por Ataturk.
Vem daí o verniz constitucional para banir os partidos islâmicos, patrulhar ideologicamente o sistema de ensino e reprimir o separatismo curdo -uma "minoria" de 8 milhões de pessoas.
A Corte Constitucional turca está julgando uma ação que pede a suspensão do AK e a proibição de Erdogan de chefiar o governo. Com isso, criou-se uma situação quase surreal: o ex-prefeito não pode concorrer ou chefiar o governo. Mas, apesar de não constar nas cédulas, sua imagem impera nas propagandas do partido.
"Os autores dessa ação querem apenas turvar as eleições", disse Erdogan anteontem. Apesar de inelegível, ninguém duvida de que ele continuaria a ser o condutor da política do partido num eventual governo do AK.
Analistas afirmam que, já que não deve conseguir a maioria parlamentar, o partido procuraria formar um gabinete com o Partido Popular Republicano (CHP), em segundo nas pesquisas.
O CHP não alcançou 10% dos votos na última eleição e ficou fora do Parlamento. Revitalizado, carrega o importante histórico de ter sido fundado por Ataturk e pode dar mais aceitação ao AK.
"Essa é a hipótese preferida pelos investidores", diz Surayev, lembrando que Kemal Dervis, um dos próceres do CHP, foi o ministro da Economia que formatou o acordo de 2001 com o FMI.
Mas não são só os mercados que estão atentos à eleição, o que vemos numa rápida volta ao mundo: em Washington, as declarações de Erdogan vem sendo pesadas com cuidado, já que os EUA pretendem usar bases da aliada Turquia -que é membro da Otan, é bom ressaltar- para um eventual ataque ao Iraque.
Em Moscou, o Kremlin vem denunciando a infiltração de guerrilheiros tchetchenos na Turquia, o que é refutado por Ancara.
Em Atenas... Bem, em Atenas, espera-se o jogo de volta, quando o Panathinaikos recebe o Fenerbahçe. O de quinta-feira acabou em 1 a 1, com o jogador brasileiro Washington, ex-Ponte Preta, marcando o gol do time turco.


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