São Paulo, sábado, 03 de dezembro de 2005

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ORIENTE MÉDIO

Dividido entre satisfazer demandas de outros países e manter apoio popular, Assad perde força política

Jogo duplo expõe fraqueza do governo sírio

MICHAEL SLACKMAN
DO "THE NEW YORK TIMES", EM DAMASCO

As autoridades sírias vêm afirmando há anos que fecharam todas as representações das facções palestinas que operam na capital da Síria, como exigem os EUA e os países europeus. Elas dizem que todos os grupos deixaram o país: Hamas, Jihad Islâmico, Frente Popular para a Libertação da Palestina e outros. Mas, em outubro, o presidente Bashar al Assad promoveu uma reunião com os líderes de todas as facções para pedir unidade entre os palestinos -e, segundo participantes do encontro, prometer a remoção de parte das restrições ao trabalho político feito desde Damasco.
"Seria ilógico convocar uma reunião pública e depois dizer que nossas representações estão fechadas", disse Abu Ahmed Fouad no escritório da Frente Popular, no centro de Damasco.
Há décadas os líderes sírios vêm jogando uma espécie de jogo duplo, assegurando ao mundo que os escritórios de representação palestina estavam fechados e, ao mesmo tempo, autorizando as organizações a montar suas representações em "apartamentos".
A estratégia funcionou bem para o pai de Bashar e seu antecessor, Hafez el Assad, que freqüentemente conduzia suas batalhas por procuração, ao mesmo tempo em que tentava utilizar a influência da Síria sobre os grupos palestinos como trunfo de barganha para promover sua agenda.
Mas essa mesma estratégia agora expõe publicamente um pouco da fraqueza e da indecisão do governo. Diante da investigação da ONU sobre o assassinato do premiê libanês Rafik Hariri (1992-98 e 2000-04) -uma crise que ameaça solapar o círculo governante sírio- a liderança síria voltou a agir como de costume, recorrendo a um discurso ao estilo da Guerra Fria e confiando quase exclusivamente num apelo ao conceito do nacionalismo árabe para obter apoio regional.
A crise mostra que os esforços de Assad para introduzir tecnocratas jovens e progressistas no governo fracassaram e que a Síria se encontra isolada. E, o que talvez seja visto por muitos sírios mais jovens e adeptos de reformas como ainda mais perturbador, ela deixou claro até que ponto a liderança síria é capaz de ignorar o que acontece à sua volta.
Por exemplo, depois que o Conselho de Segurança da ONU exigiu que a Síria coopere com a investigação em torno de Hariri, muitas pessoas na Síria disseram ter ficado chocadas ao ouvir da boca do chanceler Farouk al Sharaa que declarar que as forças sírias sabiam do assassinato de antemão seria como afirmar que os EUA soubessem sobre o 11 de Setembro de antemão.
Os sírios, em sua grande maioria, parecem estar convencidos de que a investigação está sendo utilizada pelo Ocidente para obrigar o governo Assad a dobrar-se a suas vontades. Mas essa idéia não se traduz em apoio ao governo ou à maneira como ele vem reagindo à investigação. O pior, segundo pessoas na Síria, é que a crise começou a mudar a percepção que a população tem de seus líderes, abalando sua confiança na capacidade da liderança não apenas de revidar aos ataques mas até mesmo de sobreviver.
"O regime se encontra ferido em seu escalão mais alto, menor e mais fechado", disse um analista político sírio que há anos coopera com o poder sírio, mas que pediu anonimato por temer revides.
De acordo com ele, há uma discussão em curso dentro do círculo de poder. De um lado estão os conservadores interessados em preservar o papel da Síria na região, seu hábito de agir por meio de representantes, como o Hezbollah no Líbano, e seu apoio à causa palestina. Do outro, um grupo menor que quer proteger a força do país, tomando medidas para acalmar os críticos e melhorar a situação interna nos âmbitos político, econômico e social.
Neste momento, diz, os setores conservadores parecem prevalecer. Para ele, é difícil saber onde o presidente se situa na discussão.
Quando Assad chegou ao poder, cinco anos atrás, ele se fez acompanhar de jovens com anos de instrução, muitos vindos do exterior, que estavam ansiosos por fazer seu país ingressar na modernidade econômica e política. Hoje quase todas essas pessoas já se foram, e as que restaram foram marginalizadas. Curiosamente, a crise provocada pelo assassinato de Hariri parece ao mesmo tempo ter fortalecido os conservadores e, num sentido mais amplo, enfraquecido-os.
Ouve-se com freqüência em Damasco que a população estaria disposta a suportar sanções e isolamento internacional se o governo enfrentasse problemas por sua posição em relação à causa palestina ou por suas posições relativas ao Iraque, mas não em função do caso Hariri.
Muitos representantes do governo vêm dizendo que foram enganados por Detlev Mehlis, o promotor alemão que chefiou a investigação sobre Hariri. Vários disseram ter ficado chocados quando Mehlis afirmou que a Síria não cooperou.
Autoridades disseram que, durante os dois dias que passou na cidade, Mehlis em nenhum momento expressou insatisfação. Para elas, o promotor alemão preparou a situação para parecer que a Síria não cooperou.
"O senhor quer cooperação plena? Exatamente o que o senhor quer?", perguntou um representante sírio próximo do presidente que pediu para não ser identificado. "Fizemos o que acreditávamos ser cooperar plenamente, sem ouvir nenhuma objeção da parte da equipe de Mehlis. Eles não registraram nem uma só objeção. Então o que é cooperação?"
Existe em Damasco alguma solidariedade com a posição síria. Diplomatas ocidentais admitem que o país deu alguns passos para satisfazer as exigências internacionais, tais como endurecer os controles em suas fronteiras para prevenir a passagem de militantes e armas para o Iraque e incentivar os palestinos em Damasco a apoiar a Autoridade Palestina e a não patrocinar ações militantes no Líbano, na Cisjordânia ou na faixa de Gaza.
Mesmo para os diplomatas, porém, tentar decifrar o que os líderes palestinos de fato pretendem é um pouco como ler folhas de chá.


Tradução de Clara Allain

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