São Paulo, segunda-feira, 04 de abril de 2005

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Multidão na praça festeja João Paulo 2º

Enquanto velório para autoridades ocorria no Vaticano, fiéis do lado de fora cantavam e agitavam bandeiras em homenagem ao pontífice morto

Enrico Oliverio/Presidência da Itália/Associated Press
O corpo do papa João Paulo 2º é velado na capela Clementina, no Vaticano


CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A ROMA

Na monumental basílica de São Paulo, o corpo de João Paulo 2º ficará exposto hoje, a partir das 17h (12h em Brasília). Estará lá, em câmara ardente, até o sepultamento.
O fato de estar morto não significa, porém, que o papa polonês tenha perdido a capacidade de atrair as multidões a que em vida se acostumou nas suas 104 viagens internacionais, nas 144 pela Itália e na praça São Pedro.
Um congestionamento formidável de gente, com o passo apressado, batia ontem o asfalto das vias Di Porta Angelica e Della Conciliazione, os dois principais pontos de acesso ao Vaticano, o pequeno mundo em que reina o papa desde 1377. Iam para a missa das 10h30, a primeira na praça desde a morte de Karol Wojtyla.
Iam sobretudo prestar homenagem ao papa, o que ficou evidente pouco antes de a missa começar, quando surgiu nos quatro telões da praça um cartaz improvisado com a capa de ontem do jornal "Il Tempo": uma grande foto de João Paulo 2º com o título "Nelle Tue mani" (Nas Tuas mãos).
O burburinho da massa cessa e um aplauso longo, mas contido, sem mais outras manifestações, ocupa a imensa praça.

Bandeiras
A brisa fresca de uma primavera que ainda não se firmou faz balançar as bandeiras da Polônia (muitas), da Espanha (três), do México, da Croácia, da Escócia, da Argentina, da Colômbia, do Vaticano e até os estandartes das Jornadas Mundiais da Juventude.
A brisa só não balança a bandeira do Equador que pende do carrinho de Maria Clara, 1, que dorme profundamente, alheia ao dia histórico de que participa.
No meio da praça, vai avançando impávida uma das três bandeiras do Brasil, esta nas mãos de Albertina Drummond, prima em terceiro grau do poeta Carlos Drummond de Andrade, mineira como ele, há 15 anos em Roma.
"Vim me despedir não do papa, mas do Cristo que estava encarnado nele", diz Albertina.
Sua irmã Maria Isaura de Oliveira, 14 anos em Roma, prefere definir o papa como um "vendedor que soube vender sua proposta de paz e amor". Maria Isaura ergue os olhos para a janela do terceiro andar, persianas fechadas, como se tentasse ver o papa nos aposentos em que morreu.
Não sabe, nem ninguém na praça pode ver, mas Karol Wojtyla já não está lá. É velado na capela Clementina, nas grutas do Vaticano, à qual têm acesso apenas as autoridades da própria igreja, da Itália e o corpo diplomático.
É a parte formal, burocrática, dos "novemdiales", os nove dias de duração do luto.
Não cabe a espontaneidade que o papa cultivou em seus quase 27 anos de pontificado.
A espontaneidade que a jovem Veronica Sasso, 14, exibe ao se ajoelhar na praça na Eucaristia, mostrando fé no gesto e despudor na mochila que leva às costas, com o rabisco: "I am the best; fuck the rest" ("sou a melhor; dane-se o resto", sendo o "dane-se" uma tradução suave para "fuck").
A espontaneidade que a massa -80 mil pessoas, segundo a polícia italiana- também mostrou com as palmas sincopadas acompanhando o canto "Giovanni Paolo/ Giovanni Paolo/ Giovanni Paolo", repetido antes de a missa começar.
As palmas e o canto cedem espaço a um mergulho no túnel do tempo: abre-se a porta central da basílica e dela saem para as escadarias em que está armado o altar três fileiras de cardeais, um atrás do outro, todos vestidos de branco dos pés à cabeça -o segundo domingo de Páscoa é "a festa das vestes brancas de nosso batismo", explicaria, depois, o celebrante, o cardeal italiano Angelo Sodano.
São tradições de tempos imemoriais, que servem para lembrar que 262 papas foram sepultados pela igreja antes de João Paulo 2º.
É um formidável contraste com o descuido total com que se veste Piero Farinari, 17 anos, que acompanha a missa com o auricular do seu CD player no ouvido.

Passagem
O cardeal Sodano volta ao princípio da igreja na homília, tirada da Primeira Carta de São Pedro Apóstolo. Fala da morte de João Paulo 2º e pede que os fiéis "olhem para Cristo, única razão da nossa esperança". Aplausos.
Acrescenta: "Nossa morte não é senão uma passagem para a pátria do Senhor". A brisa fresca cessa, o sol luta para furar as nuvens, o que permite que as pessoas tirem blusas e casacos. Como Juan Carlos, 12 anos, que exibe a camisa do Barcelona, número 10 de Ronaldinho às costas.
Finda a homília, começam os ritos para a comunhão, que, em certo momento, exigem que cessem cânticos e palavras. É um minuto de silêncio imenso em que só se ouve o som da água caindo nas duas fontes da praça e, para os que estão próximos, o chorinho de Maria Clara, a pequena equatoriana que acaba de acordar.
À margem do rito, uma surpresa: d. Leonardo Sandri, o bispo ítalo-argentino que funcionou como porta-voz do papa nas cerimônias do seu período de agonia, avisa que vai ler uma saudação preparada por João Paulo 2º.
"Para mim, é uma honra mas traz também nostalgia", diz Sandri. Aplausos de novo. É uma mensagem pastoral, sem nada de política, se é que o pastoral não acaba sendo sempre político.
Diz no seu ponto principal: "À humanidade, que nesta hora parece perdida e dominada pelos poderes do mal, do egoísmo e do medo, o Senhor oferece o dom de seu amor, que perdoa, reconcilia e reabre o espírito para a esperança". Nos telões, João Paulo 2º aparece, forte, jovem, de hábito pontifício, o olhar perdido no infinito.
Com a voz forte, Sandri termina a saudação, a sua última, com "Jesus, confio em ti, tenha piedade de nós e do mundo inteiro".
Os aplausos são prolongados. A missa termina. Mas pouca gente se move. A massa fica na praça, como vem ficando desde que, na quinta-feira, João Paulo 2º começou a se apagar serenamente. Voltará hoje, amanhã, quarta-feira, até que o corpo do pontífice seja levado para as catacumbas do Vaticano, talvez na quinta.


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