São Paulo, segunda-feira, 04 de abril de 2005

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Um papa da era do espetáculo

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Chamar o papa João Paulo 2º de "carismático" sempre me pareceu um certo exagero. Popular e midiático, sem dúvida, João Paulo 2º sempre foi, em especial nos primeiros tempos de seu papado.
Mas o que se espera de um líder carismático é sobretudo o poder de impor valores, de mobilizar consciências, de transfigurar, de "converter" as massas a determinada visão de mundo. Embora João Paulo 2º tenha exercido um papel importantíssimo na guinada política conservadora que tomou conta do planeta a partir da década de 1980, não me parece que sua atuação tenha tido efeitos substantivos sobre o comportamento, as idéias, as predisposições das massas que o consagraram como um dos maiores ícones do seu tempo.
Não me refiro apenas aos aspectos em que o Vaticano ficou praticamente falando sozinho nos últimos 20 anos, como a condenação da pílula e da camisinha. De modo geral, a figura "midiática" de João Paulo 2º ultrapassou todos os conteúdos doutrinários que tenha procurado transmitir. No seu caso, o "meio" foi maior que a mensagem.
Na época de João 23 e de Paulo 6º, a nítida esquerdização da Igreja Católica era uma estratégia de sobrevivência. Acreditava-se que o mundo rumava para algum tipo de socialismo.
Os esforços violentos de resistir a isso surgiam como simples tentativas de atrasar o relógio da história. A modernização da igreja passava por sua abertura às idéias da esquerda. Mas a figura acinzentada, formal e contida de Paulo 6º -não me lembro de uma foto sua em que estivesse sorrindo- diminuía, sem dúvida, o alcance desse projeto.
Na minha memória, o papa dotado de irresistível encanto pessoal e poderes, aí sim, quase mágicos de comunicação, foi João Paulo 1º.
Não me esqueço de sua primeira aparição, acenando sorridente daquela janela do Vaticano. Disse que, quando chegara a Roma para participar da eleição do novo papa, "não fazia a menor idéia... daquilo que acabou acontecendo!". Era alguém falando como uma pessoa, não como um detentor de cargo vitalício e sacrossanto. A revolução de informalidade e de quebra de protocolo que Albino Luciani promoveu nos seus poucos dias de papado deixou, na verdade, seu sucessor numa situação difícil.
Era impossível reverter à frieza hierática de Paulo 6º. Ao mesmo tempo, o projeto de João Paulo 2º era hostil a toda modernização política no rumo da esquerda. A solução encontrada foi modernizar o tipo de relação do papa com o público -torná-lo, como disse alguém, uma figura "pop". Viagens, papamóvel, publicações, fotografias, atividades esportivas: o vocabulário contemporâneo das "celebridades", da espetacularização midiática, foi apropriado com especial eficiência.

Riscos da impopularidade
Por outro lado, a imprevista derrocada do regime soviético dava razão e contemporaneidade à resistência anticomunista do Vaticano. Assim, o que parecia, depois da morte de Albino Luciani, um impasse estratégico, se revelou uma aposta extremamente bem-sucedida numa nova forma de modernização, agora à direita. Talvez esse sucesso tenha inspirado João Paulo 2º a assumir os riscos da impopularidade na questão dos costumes sexuais.
Sua grande tarefa, a de desmantelar a influência da esquerda sobre a igreja, acabou sendo cumprida; mas essa mensagem doutrinária se esvaziava, à medida que a própria vitória estava assegurada. O resultado foi um esgotamento estratégico, semelhante ao esgotamento físico cuja dolorosa espetacularização fomos forçados a acompanhar. Mais uma vez, ao que tudo indica, caberá a um novo papa reinventar a velha Igreja Católica.


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