São Paulo, segunda-feira, 04 de abril de 2005

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Papado ajudou a reconfigurar poder global

ROBERTO ROMANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

João Paulo 2 mudou a estratégia da Igreja e ajudou a decidir a nova configuração do poder mundial. Quando ele subiu ao trono, a instituição religiosa enfrentava uma grave crise de identidade, após a revolução do Concilio Vaticano 2. João 23 causou surpresas nos Estados laicos, capitalistas e comunistas : quebrou protocolos, reservas diplomáticas, hierarquias da Cúria Romana. O Concilio foi convocado por sua expressa vontade contra setores cardinalícios. As Enciclicas Mater et Magistra e Pacem in Terris mostraram uma face inédita do catolicismo social, o diálogo entre o altar e as várias ideologias. O Concilio mudou a liturgia, atenuou costumes, firmou a Igreja como partícipe dos países em questões de guerra e paz, de segurança e desenvolvimento econômico.
Depois da Revolução, veio o Termidor eclesiástico. Paulo 6, intelectual e aberto à nova diplomacia vaticana enfrentou, devido às aberturas do Vaticano 2, contestações de sacerdotes e de leigos. O aborto e a pílula anti-concepcional pautaram o pontificado, enquanto seguia o diálogo com os poderes mundiais, notando-se leve tendência à esquerda na Enciclica Populorum Progresio. Mas o freio foi aplicado na vida interna da Igreja. Com os movimentos de 68, leigos e padres católicos críticaram o celibato, o casamento, etc. Muitos deixaram a batina, diminuindo a força operativa da hierarquia. Grave foi o secularismo assumido intelectuais e sacerdotes, o que deu vazão a teologias onde se uniam métodos marxistas e doutrinas cristãs. Com os movimentos de libertação (sobretudo na America do Sul), os ensaios intelectuais passaram à prática, solapando a disciplina religiosa.
Morto Paulo 6, surge o papa conservador que programou uma nova disciplina. Foi eleito João Paulo 1, o papa breve, morto em dias de trono. A Igreja sagrou então a pessoa que apoiara as reformas do Concilio, mas deu à política externa do Vaticano o tom antigo (conduzido por Pio 12), de hostilidade ao comunismo. João Paulo 2 imaginou que para destruir a URSS seria preciso desmantelar os movimentos católicos com tinturas marxistas. Ele implementou censuras, afastou professores de teologia, impôs controle sobre seminários e universidades. O governo da Igreja foi reunido em suas mãos e na de auxiliares diretos, em detrimento dos bispos.
As vitórias diplomáticas foram espetaculares, quando se tratou de arrasar a URSS. Também foi importante a aliança com os governos conservadores dos EUA. Para derrubar um baluarte da teologia da libertação, o sandinismo, o papa operou com serviços secretos americanos, como no caso Irã/Contras. Sua tática com os regimes ditatoriais sul americanos foi calculista. Pessoas como Pinochet e colegas argentinos tiveram "compreensão" do pontífice.
Mas ele sofreu revezes nas negociações com países católicos como a França, a Irlanda, a Espanha e mesmo a Polônia. A fraqueza de sua estratégica foi a moral, o divórcio, o aborto, os direitos das minorias sexuais, etc. Com uma super-potência imperial sem outra força que a contestasse, João Paulo 2 revisou o trato com os EUA. O Vaticano serviu como instrumento de moderação e denúncia do belicismo daquela Federação. É o caso da guerra no Iraque. Nas batalhas entre Israel e movimentos árabes, a Santa Sé agilizou negociações, não raro secretas.
A Igreja, disciplinadas as suas próprias hostes, assumiu papel relevante na política internacional dos séculos 20 e 21. Mesmo Estados ateus de hoje não recusam a presença católica nos tratos secretos ou públicos sobre guerra e paz, direitos humanos, economia, cultura.
Nos vínculos com os governos conservadores dos EUA, o papa rearticulou a prática da Igreja e não caiu nos discursos neo-liberais ou nas ameaças de caça sem limites juridicos ao terror. Contra a as últimas presidências republicanas dos EUA. ele definiu sua própria marcha seguindo um mapa do mundo cheio de matizes e de finezas analíticas. A Igreja não foi reduzida a um Departamento do poder norte-americano.
O legado de independência, imposto por João Paulo 2, será discutido no próximo Conclave que escolherá o novo papa, cujo nome pode sugerir os rumos do Vaticano. O contencioso com os países católicos permanece, como as guerras, o terror. Nunca, na história da humanidade, a relação entre Estados foi tão assimétrica, em prol dos grandes países e em detrimento dos pequenos. Estado minúsculo, mas com amplitude cósmica, o Vaticano tem muito a oferecer ao mundo. Não é possível, entretanto, ignorar o vazio de seus templos e a cultura urbana sem cristianismo. A Igreja não possui divisões poderosas, mas exerce liderança ética e diplomática no mundo dos Estados. Sua força reside nas massas fiéis ao papa seja qual for o seu nome. João Paulo 2 aumentou, com sua atividade junto à midia, o número dos católicos. Mas este exercício de Sisifo não rende muitos frutos porque a disciplina férrea aplicada à vida eclesiástica força a apostasia, silenciosa mas inapelável, de multidões que precisam cuidar do corpo e da alma na era da AIDS e das diferenças éticas, políticas, religiosas.


Roberto Romano é professor de ética e filosofia na Unicamp

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