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Cozinha de Guangdong é marco zero
ELISABETH ROSENTHAL
DO "NEW YORK TIMES", EM SHUNDE (CHINA)
Cerca de uma hora ao sul de
Cantão, o mercado de animais de
Dongyuan apresenta oportunidades sem fim para um parasita
emergente. Em centenas de bancas que cheiram a sangue e vísceras, comerciantes vendem várias
das iguarias comumente servidas
nas mesas da Província chinesa de
Guangdong: cobras, sapos, gatos,
texugos, aves diversas e ratos.
O verdadeiro zoológico está exposto em gaiolas empilhadas
umas sobre as outras -que servem, ao mesmo tempo, de bancos
e de mesas de jogo e de jantar para
os migrantes pobres que trabalham no local.
Se você fosse um coronavírus,
como o que causa a Sars (síndrome respiratória aguda grave, na
sigla em inglês), seria fácil se
transportar de animais para seres
humanos nas cozinhas de Guangdong, Província famosa por sua
culinária preparada com estranhos animais mortos na hora.
Estudos preliminares revelam
que um percentual inusualmente
alto entre as primeiras vítimas da
Sars em Guangdong era de trabalhadores do setor de alimentação,
indício de como o vírus, que normalmente atacava aves ou roedores, passou a infectar humanos.
Um dos primeiros casos, em dezembro último, foi o de um vendedor de cobras e pássaros, que
morreu no hospital de Shunde
(sul da China). Sua mulher e funcionários do hospital também
contraíram o vírus.
Mas, se esses casos iniciais apresentam pistas científicas sobre a
origem da Sars, também oferecem lições sobre como uma doença que se espalhou pelo mundo
poderia ter sido controlada.
Até agora, os estudos estão nos
estágios iniciais e não há conclusões. Mesmo que manipuladores
de alimentos tenham contribuído
para que a Sars passasse dos animais para os seres humanos, todas as evidências apontam para
uma transmissão de ser humano
para ser humano no momento.
Durante boa parte de dezembro
e janeiro, diversas cidades pequenas em torno de Cantão estavam
combatendo -e às vezes vencendo- focos da estranha pneumonia, mais tarde chamada de Sars.
No início de fevereiro, pacientes
assustados de pequenas cidades
do sul da China foram transferidos para hospitais em Cantão
-foi quando a explosão de casos
realmente começou.
De 2 a 4 de fevereiro, um homem muito doente de Zhongshan infectou dezenas de trabalhadores de saúde ao buscar socorro
em Cantão. Os funcionários das
salas de emergência dos hospitais
não sabiam quase nada sobre a
nova pneumonia que acabara de
surgir na Província. Inicialmente,
eles não isolaram o doente e não
utilizaram roupas de proteção.
O paciente era o que se denomina de "supertransmissor"
-membro do pequeno grupo de
portadores altamente infecciosos.
Dezenas de médicos e enfermeiras adoeceram. Na China e em
outros países da Ásia, os funcionários de hospitais representam
mais de 30% dos casos de Sars.
Em 21 de fevereiro, o médico
Liu Jianlun, um pneumologista de
64 anos de Zhongshan, viajou a
Hong Kong para o casamento de
seu sobrinho, embora estivesse
com febre. Com o que se sabe
atualmente sobre a doença, pessoas como Liu, que haviam tido
uma intensa exposição ao vírus
da Sars, seriam colocadas de quarentena (isolamento) e proibidas
de viajar. Mas essas orientações
não existiam então.
No Hotel Metrópole, onde o
médico Liu ficou, o vírus foi retransmitido para vários hóspedes,
inclusive dois canadenses, um
executivo americano que viajou
em seguida para Hanói, um morador de Hong Kong e três moças
de Cingapura. A Sars, que até então estava limitada ao interior da
China, espalhou-se pelo mundo.
No hospital Kwang Wah, em
Hong Kong, onde Liu se internou
já quase sem poder respirar, o
médico doente alertou seus colegas e as enfermeiras sobre a misteriosa pneumonia que estava devastando sua cidade natal. Insistiu para ser isolado atrás de duas
folhas de vidro e exigiu que os
funcionários do hospital se protegessem com roupas especiais.
Morreu alguns dias mais tarde,
mas ninguém foi infectado.
Entretanto seu testemunho não
foi compartilhado com outros
médicos de Hong Kong e do resto
do mundo. E, com o novo coronavírus silenciosamente incubado em seus organismos, os nove
hóspedes do Hotel Metrópole se
dispersaram em aviões e, como
abelhas, transportaram o pólen
mortal para locais distantes.
A mulher de Toronto, Kwan
Sui-chu, morreu num hospital na
cidade canadense, em 5 de março.
Antes, infectou seu filho e pelo
menos cinco funcionários. O Canadá, único país fora do continente asiático onde a Sars fez vítimas, registrou até anteontem 320
casos prováveis ou suspeitos (ainda não há teste em larga escala para comprovar a presença do vírus) e 23 mortes.
Johnny Chen, o executivo americano, caiu doente num hospital
de Hanói (Vietnã) no final de fevereiro. Infectou 20 funcionários,
incluindo o médico italiano Carlo
Urbani, que alertou a OMS sobre
um novo tipo de doença.
O hóspede de Hong Kong foi internado numa ala de pacientes comuns do hospital Príncipe de Gales e iniciou um novo surto da
doença.
As três mulheres de Cingapura
ficaram doentes após retornarem
a suas casas no final de fevereiro.
Foram internadas em três hospitais diferentes entre 1º e 3 de março. Enquanto duas delas não infectaram ninguém, a terceira, Esther Mok, membro do grupo dos
supertransmissores, deu início a
uma corrente de infecção no hospital Tan Tock Seng. Mas de 90 ficaram doentes nos dias seguintes.
Em 14 de março, a Organização
Mundial da Saúde, com sede em
Genebra (Suíça), divulgou formalmente um alerta mundial sobre a nova doença, que recebeu o
nome de Sars.
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