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São Paulo, domingo, 04 de maio de 2003

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Cozinha de Guangdong é marco zero

ELISABETH ROSENTHAL
DO "NEW YORK TIMES", EM SHUNDE (CHINA)

Cerca de uma hora ao sul de Cantão, o mercado de animais de Dongyuan apresenta oportunidades sem fim para um parasita emergente. Em centenas de bancas que cheiram a sangue e vísceras, comerciantes vendem várias das iguarias comumente servidas nas mesas da Província chinesa de Guangdong: cobras, sapos, gatos, texugos, aves diversas e ratos.
O verdadeiro zoológico está exposto em gaiolas empilhadas umas sobre as outras -que servem, ao mesmo tempo, de bancos e de mesas de jogo e de jantar para os migrantes pobres que trabalham no local.
Se você fosse um coronavírus, como o que causa a Sars (síndrome respiratória aguda grave, na sigla em inglês), seria fácil se transportar de animais para seres humanos nas cozinhas de Guangdong, Província famosa por sua culinária preparada com estranhos animais mortos na hora.
Estudos preliminares revelam que um percentual inusualmente alto entre as primeiras vítimas da Sars em Guangdong era de trabalhadores do setor de alimentação, indício de como o vírus, que normalmente atacava aves ou roedores, passou a infectar humanos.
Um dos primeiros casos, em dezembro último, foi o de um vendedor de cobras e pássaros, que morreu no hospital de Shunde (sul da China). Sua mulher e funcionários do hospital também contraíram o vírus.
Mas, se esses casos iniciais apresentam pistas científicas sobre a origem da Sars, também oferecem lições sobre como uma doença que se espalhou pelo mundo poderia ter sido controlada.
Até agora, os estudos estão nos estágios iniciais e não há conclusões. Mesmo que manipuladores de alimentos tenham contribuído para que a Sars passasse dos animais para os seres humanos, todas as evidências apontam para uma transmissão de ser humano para ser humano no momento.
Durante boa parte de dezembro e janeiro, diversas cidades pequenas em torno de Cantão estavam combatendo -e às vezes vencendo- focos da estranha pneumonia, mais tarde chamada de Sars.
No início de fevereiro, pacientes assustados de pequenas cidades do sul da China foram transferidos para hospitais em Cantão -foi quando a explosão de casos realmente começou.
De 2 a 4 de fevereiro, um homem muito doente de Zhongshan infectou dezenas de trabalhadores de saúde ao buscar socorro em Cantão. Os funcionários das salas de emergência dos hospitais não sabiam quase nada sobre a nova pneumonia que acabara de surgir na Província. Inicialmente, eles não isolaram o doente e não utilizaram roupas de proteção.
O paciente era o que se denomina de "supertransmissor" -membro do pequeno grupo de portadores altamente infecciosos. Dezenas de médicos e enfermeiras adoeceram. Na China e em outros países da Ásia, os funcionários de hospitais representam mais de 30% dos casos de Sars.
Em 21 de fevereiro, o médico Liu Jianlun, um pneumologista de 64 anos de Zhongshan, viajou a Hong Kong para o casamento de seu sobrinho, embora estivesse com febre. Com o que se sabe atualmente sobre a doença, pessoas como Liu, que haviam tido uma intensa exposição ao vírus da Sars, seriam colocadas de quarentena (isolamento) e proibidas de viajar. Mas essas orientações não existiam então.
No Hotel Metrópole, onde o médico Liu ficou, o vírus foi retransmitido para vários hóspedes, inclusive dois canadenses, um executivo americano que viajou em seguida para Hanói, um morador de Hong Kong e três moças de Cingapura. A Sars, que até então estava limitada ao interior da China, espalhou-se pelo mundo.
No hospital Kwang Wah, em Hong Kong, onde Liu se internou já quase sem poder respirar, o médico doente alertou seus colegas e as enfermeiras sobre a misteriosa pneumonia que estava devastando sua cidade natal. Insistiu para ser isolado atrás de duas folhas de vidro e exigiu que os funcionários do hospital se protegessem com roupas especiais. Morreu alguns dias mais tarde, mas ninguém foi infectado.
Entretanto seu testemunho não foi compartilhado com outros médicos de Hong Kong e do resto do mundo. E, com o novo coronavírus silenciosamente incubado em seus organismos, os nove hóspedes do Hotel Metrópole se dispersaram em aviões e, como abelhas, transportaram o pólen mortal para locais distantes.
A mulher de Toronto, Kwan Sui-chu, morreu num hospital na cidade canadense, em 5 de março. Antes, infectou seu filho e pelo menos cinco funcionários. O Canadá, único país fora do continente asiático onde a Sars fez vítimas, registrou até anteontem 320 casos prováveis ou suspeitos (ainda não há teste em larga escala para comprovar a presença do vírus) e 23 mortes.
Johnny Chen, o executivo americano, caiu doente num hospital de Hanói (Vietnã) no final de fevereiro. Infectou 20 funcionários, incluindo o médico italiano Carlo Urbani, que alertou a OMS sobre um novo tipo de doença.
O hóspede de Hong Kong foi internado numa ala de pacientes comuns do hospital Príncipe de Gales e iniciou um novo surto da doença.
As três mulheres de Cingapura ficaram doentes após retornarem a suas casas no final de fevereiro. Foram internadas em três hospitais diferentes entre 1º e 3 de março. Enquanto duas delas não infectaram ninguém, a terceira, Esther Mok, membro do grupo dos supertransmissores, deu início a uma corrente de infecção no hospital Tan Tock Seng. Mas de 90 ficaram doentes nos dias seguintes.
Em 14 de março, a Organização Mundial da Saúde, com sede em Genebra (Suíça), divulgou formalmente um alerta mundial sobre a nova doença, que recebeu o nome de Sars.



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