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"Mal-estar europeu é superficial"
Para o historiador Bernard Wasserstein, não há crise estrutural nem animosidade generalizada contra imigrantes
Acadêmico inglês diz que hoje identidade européia é "atitude moral e política" e independe de gênero e cor; insatisfações são localizadas
SAMY ADGHIRNI
DA REPORTAGEM LOCAL
Se o velho continente permanece como um pólo de hiperdesenvolvimento e prosperidade,
parece longe o tempo em que
ostentava o título de maior centro mundial de poder. Berço da
civilização ocidental, a Europa
viu evaporar nas últimas décadas boa parte de sua influência
comercial, cultural e diplomática, até chegar ao marasmo
atual. Em meio a apatia econômica, greves, protestos e aumento da xenofobia, os europeus questionam seu papel na
globalidade do século 21.
É essa trajetória declinante,
feita de traumas e sobressaltos,
que o historiador inglês Bernard Wasserstein, 60, analisa
em "Barbarism and Civilization" (2007, sem tradução no
Brasil). Nesta entrevista à Folha por telefone desde Amsterdã, ele falou sobre as mudanças
na consciência coletiva européia e defendeu uma visão positiva do futuro, minimizando a
morosidade econômica e os
problemas ligados à imigração.
FOLHA - Qual a diferença entre ser
europeu hoje e há um século?
BERNARD WASSERSTEIN - Há cem
anos, ser europeu significava
essencialmente ser um homem
branco e parte de uma sociedade que dominava o mundo. Hoje, ser europeu significa ser um
homem ou uma mulher -não
devemos esquecer que a igualdade de gênero não existia- e
não necessariamente branco.
Outra diferença é que a Europa
perdeu espaço e já não domina
a humanidade. Os impérios europeus ruíram, o soviético por
último. As superpotências deixaram de ser européias. Por
fim, hoje, principalmente em
países pequenos como a Holanda, o conceito de ser europeu é
uma atitude política e moral.
Antigamente a idéia de ser europeu não existia. As pessoas se
diziam alemãs, francesas...
FOLHA - Por que a Europa perdeu
espaço no mundo?
WASSERSTEIN - Há várias razões,
as principais sendo as duas
guerras mundiais e suas amplas
conseqüências. Outro motivo é
o efeito da construção dos impérios europeus. Quando a Europa dominava o mundo, ela
impôs seus valores e infra-estrutura a outras sociedades,
permitindo que estas se desenvolvessem por conta própria,
como a Índia. Há visões positivas e negativas do imperialismo, mas é inegável que ele espalhou meios modernos de comunicação, estradas, ferrovias,
investimento. Idéias e padrões
europeus de educação acabaram estimulando os países a se
voltarem contra a Europa para
se tornarem independentes.
FOLHA - A crise econômica é uma
razão ou uma conseqüência do declínio europeu?
WASSERSTEIN - Não acho que haja crise econômica. O que existe
é uma crise financeira significativa, o que é muito diferente.
As economias européias estão
indo bem. Até a França e a Alemanha crescem mais do que há
dez anos. Talvez estejamos no
meio da curva negativa de um
processo cíclico, mas não numa
crise estrutural como a dos
anos 70. Há até quem esbanje
crescimento, como os novos
membros da UE.
FOLHA - Vendo os constantes protestos e greves, tem-se a impressão
de que os europeus estão insatisfeitos, embora desfrutem da melhor
qualidade de vida no mundo.
WASSERSTEIN - As greves no Reino Unido não se comparam ao
que ocorreu nos anos 70, e os
protestos na França também
estão longe do que foi 1968. O
que acontece são reações de
segmentos da sociedade às inevitáveis mudanças trazidas pelo avanço econômico. Hoje o
problema é superficial.
FOLHA - O senhor vê relação entre
os problemas da Europa e o surgimento de novas potências? Os europeus têm medo da China?
WASSERSTEIN - Alguns setores
de trabalhadores temem que as
fábricas sejam removidas para
regiões com mão-de-obra mais
barata. A indústria manufatureira corre sério risco de desaparecer em algumas partes da
Europa. Por outro lado, os europeus estão preocupados com
a alta do petróleo. A Europa
precisa importar a maior parte
de seu consumo. Uma das alternativas é a energia nuclear, mas
ela enfrenta rejeição popular.
Os protestos contra a China
têm a ver com o fato de o país
não ser uma democracia e ostentar comportamento político
e valores opostos aos que a
imensa maioria dos europeus
vê como padrões de conduta.
FOLHA - Até que ponto o mal-estar
da Europa está ligado à forte presença de imigrantes não-europeus?
WASSERSTEIN - Eu moro em
Amsterdã, cidade que concentrou alguns dos problemas surgidos nos últimos anos. Apesar
dos ímpetos xenófobos de parte da população, a cidade é um
exemplo de harmonia racial. E
há muitos lugares assim. Diante da enorme escala migratória
na UE nas três últimas décadas,
há surpreendentemente poucos violência e problemas.
FOLHA - Mas partidos de extrema-direita se fortalecem e o discurso xenófobo se banaliza entre políticos...
WASSERSTEIN - Estou preocupado com a extrema direita na
Áustria e na Itália. Ela também
tem força em alguns contextos,
como na região belga de Flandres. Por outro lado, a extrema
direita é insignificante na Alemanha ou no Reino Unido. Na
França, o fenômeno [Jean-Marie] Le Pen esvaiu-se. Alguns
atribuem isso ao fato de Sarkozy ter cooptado o voto xenófobo, mas ele não só não é fascista como descende de judeus.
FOLHA - Os europeus sofrem de
um complexo de superioridade?
WASSERSTEIN - Alguns sim, outros não. Os jovens alemães,
por exemplo, são muito conscientes do perigo de ver o mundo dessa forma. Isso explica a
força do sentimento pacifista
na Europa em geral. Os americanos reclamam que os europeus contribuem pouco com a
Otan [aliança militar ocidental], mas isso reflete sua preferência pelo soft power [poder
de persuasão pela diplomacia,
cooperação e influência cultural]. A Europa não tem mais estômago para guerras longas.
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