São Paulo, domingo, 04 de maio de 2008

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"Mal-estar europeu é superficial"

Para o historiador Bernard Wasserstein, não há crise estrutural nem animosidade generalizada contra imigrantes

Acadêmico inglês diz que hoje identidade européia é "atitude moral e política" e independe de gênero e cor; insatisfações são localizadas


SAMY ADGHIRNI
DA REPORTAGEM LOCAL

Se o velho continente permanece como um pólo de hiperdesenvolvimento e prosperidade, parece longe o tempo em que ostentava o título de maior centro mundial de poder. Berço da civilização ocidental, a Europa viu evaporar nas últimas décadas boa parte de sua influência comercial, cultural e diplomática, até chegar ao marasmo atual. Em meio a apatia econômica, greves, protestos e aumento da xenofobia, os europeus questionam seu papel na globalidade do século 21.
É essa trajetória declinante, feita de traumas e sobressaltos, que o historiador inglês Bernard Wasserstein, 60, analisa em "Barbarism and Civilization" (2007, sem tradução no Brasil). Nesta entrevista à Folha por telefone desde Amsterdã, ele falou sobre as mudanças na consciência coletiva européia e defendeu uma visão positiva do futuro, minimizando a morosidade econômica e os problemas ligados à imigração.

 

FOLHA - Qual a diferença entre ser europeu hoje e há um século?
BERNARD WASSERSTEIN
- Há cem anos, ser europeu significava essencialmente ser um homem branco e parte de uma sociedade que dominava o mundo. Hoje, ser europeu significa ser um homem ou uma mulher -não devemos esquecer que a igualdade de gênero não existia- e não necessariamente branco. Outra diferença é que a Europa perdeu espaço e já não domina a humanidade. Os impérios europeus ruíram, o soviético por último. As superpotências deixaram de ser européias. Por fim, hoje, principalmente em países pequenos como a Holanda, o conceito de ser europeu é uma atitude política e moral. Antigamente a idéia de ser europeu não existia. As pessoas se diziam alemãs, francesas...

FOLHA - Por que a Europa perdeu espaço no mundo?
WASSERSTEIN
- Há várias razões, as principais sendo as duas guerras mundiais e suas amplas conseqüências. Outro motivo é o efeito da construção dos impérios europeus. Quando a Europa dominava o mundo, ela impôs seus valores e infra-estrutura a outras sociedades, permitindo que estas se desenvolvessem por conta própria, como a Índia. Há visões positivas e negativas do imperialismo, mas é inegável que ele espalhou meios modernos de comunicação, estradas, ferrovias, investimento. Idéias e padrões europeus de educação acabaram estimulando os países a se voltarem contra a Europa para se tornarem independentes.

FOLHA - A crise econômica é uma razão ou uma conseqüência do declínio europeu?
WASSERSTEIN
- Não acho que haja crise econômica. O que existe é uma crise financeira significativa, o que é muito diferente. As economias européias estão indo bem. Até a França e a Alemanha crescem mais do que há dez anos. Talvez estejamos no meio da curva negativa de um processo cíclico, mas não numa crise estrutural como a dos anos 70. Há até quem esbanje crescimento, como os novos membros da UE.

FOLHA - Vendo os constantes protestos e greves, tem-se a impressão de que os europeus estão insatisfeitos, embora desfrutem da melhor qualidade de vida no mundo. WASSERSTEIN - As greves no Reino Unido não se comparam ao que ocorreu nos anos 70, e os protestos na França também estão longe do que foi 1968. O que acontece são reações de segmentos da sociedade às inevitáveis mudanças trazidas pelo avanço econômico. Hoje o problema é superficial.

FOLHA - O senhor vê relação entre os problemas da Europa e o surgimento de novas potências? Os europeus têm medo da China?
WASSERSTEIN
- Alguns setores de trabalhadores temem que as fábricas sejam removidas para regiões com mão-de-obra mais barata. A indústria manufatureira corre sério risco de desaparecer em algumas partes da Europa. Por outro lado, os europeus estão preocupados com a alta do petróleo. A Europa precisa importar a maior parte de seu consumo. Uma das alternativas é a energia nuclear, mas ela enfrenta rejeição popular. Os protestos contra a China têm a ver com o fato de o país não ser uma democracia e ostentar comportamento político e valores opostos aos que a imensa maioria dos europeus vê como padrões de conduta.

FOLHA - Até que ponto o mal-estar da Europa está ligado à forte presença de imigrantes não-europeus?
WASSERSTEIN
- Eu moro em Amsterdã, cidade que concentrou alguns dos problemas surgidos nos últimos anos. Apesar dos ímpetos xenófobos de parte da população, a cidade é um exemplo de harmonia racial. E há muitos lugares assim. Diante da enorme escala migratória na UE nas três últimas décadas, há surpreendentemente poucos violência e problemas.

FOLHA - Mas partidos de extrema-direita se fortalecem e o discurso xenófobo se banaliza entre políticos...
WASSERSTEIN
- Estou preocupado com a extrema direita na Áustria e na Itália. Ela também tem força em alguns contextos, como na região belga de Flandres. Por outro lado, a extrema direita é insignificante na Alemanha ou no Reino Unido. Na França, o fenômeno [Jean-Marie] Le Pen esvaiu-se. Alguns atribuem isso ao fato de Sarkozy ter cooptado o voto xenófobo, mas ele não só não é fascista como descende de judeus.

FOLHA - Os europeus sofrem de um complexo de superioridade?
WASSERSTEIN
- Alguns sim, outros não. Os jovens alemães, por exemplo, são muito conscientes do perigo de ver o mundo dessa forma. Isso explica a força do sentimento pacifista na Europa em geral. Os americanos reclamam que os europeus contribuem pouco com a Otan [aliança militar ocidental], mas isso reflete sua preferência pelo soft power [poder de persuasão pela diplomacia, cooperação e influência cultural]. A Europa não tem mais estômago para guerras longas.


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