São Paulo, domingo, 04 de julho de 2004

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MÁRCIA, A FAXINEIRA

"Desmaiei, não conseguia mais"

DE NOVA YORK

No final de maio de 2002, Márcia, 34, passou nove dias no deserto que, no extremo oeste dos dois países, separa o México dos EUA. Fazia parte de um grupo de sete brasileiros conduzidos por dois mexicanos, os coiotes, que cobraram US$ 6.000 por pessoa para guiá-los na travessia.
Após terem viajado de avião até a Cidade do México, novamente de avião até Guadalajara (onde pagaram US$ 500 cada para policiais mexicanos, ela diz) e de ônibus e van até a fronteira, esperavam do lado mexicano uma falha da patrulha de fronteira.
"A gente subia a serra, aí pelas oito horas, já escurecendo. Ficávamos até as dez, e eles falavam: "Hoje não dá para passar". A gente descia. Foram oito vezes assim, subindo e descendo."
Antes, quando alcançaram pela primeira vez o pé dessa serra, foram orientados a se desfazer da pouca bagagem que tinham levado até ali. "Dormíamos nas pedras, nas cavernas. Jogamos tudo fora. Os coiotes catam tudo. A gente coloca uma roupa por cima da outra e vai jogando fora."
"Quando finalmente passamos, começamos a andar mais ou menos às nove da noite, o que terminou só na manhã do outro dia. Foram mais de 100 km a pé."
O caminho de Márcia, o mais difícil, é por isso mesmo o mais barato. Segundo um coiote de Governador Valadares ouvido pela Folha, a travessia por essa região custa cerca de US$ 6.000, enquanto pela fronteira com o Texas, no lado leste do país, sai por pelo menos US$ 8.000.
"Comíamos uma vez por dia, os coiotes traziam macarrão. No outro dia, era arroz com feijão, carne. E água. A gente tinha de carregar água com a gente, senão morria de sede. Carregava nesses galõezinhos. Na caminhada final, eu desmaiei. Almocei hoje, vamos supor, e passei a noite andando. Dez horas da manhã, mais ou menos, a gente andando, andando. Desmaiei, não conseguia mais."
Chegaram depois a uma fazenda, e, de lá, foram de van até Los Angeles. Ficaram presos numa casa com outras 15 pessoas -"Não podíamos conversar nada, tinha que ficar todo mundo calado". Tomaram outra van e passaram três dias e três noites cruzando os EUA, da Califórnia até Nova York. Uma amiga de seu irmão, que mora nos EUA, era a dona do carro e viajava acompanhada de sua filha. "Ela levou uma menininha de um ano. Foi graças a ela que não fomos presos. O guarda mandou parar. Ele pediu o documento, mas, quando viu a menina na cadeirinha dela, deixou seguir."
Márcia faz faxina e trabalha cuidando de crianças. Diz ganhar US$ 430 por semana. No Brasil, trabalhando "com telemarketing", recebia R$ 600 por mês. Economiza quase US$ 1.000 por mês, diz, mas, no final do ano passado, gastou tudo com a reforma da casa de sua mãe, em Goiânia. Esconde os livros de inglês na mochila quando vai ao curso noturno que faz, com medo de que a polícia perceba que é imigrante. E sente saudades dos três filhos -é por causa deles, um de 7, outra de 13 e um mais velho de 19, diz, que está tentando ganhar dinheiro nos EUA.
"Já estava chorando agorinha, vendo uma fita que minha mãe mandou." Vale o sacrifício? "Ô menino, tem hora que eu acho que sim, tem hora que acho que não. Porque eu estou perdendo a melhor fase da minha filha. Meu filho está com sete anos. Não vejo o dentinho dele cair, não vejo o outro nascer. Tem hora que eu acho que não compensa."


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