São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2005

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DEPOIMENTOS/NOVA ORLEANS

Temos saudades de você, volte logo

RONLYN DOMINGUE
ESPECIAL PARA O "INDEPENDENT"

Três dias depois de o furacão Katrina ter deixado Nova Orleans, abri meu laptop num Starbucks situado a algumas quadras de onde moro, a 110 quilômetros a oeste da devastação. Estava a meu lado minha amiga Alison, que ficou na cidade durante a tempestade e fugiu na manhã seguinte.
Ela chegou a minha casa sem ser anunciada, carregando tudo que coube no carro -um laptop, roupas, comida, objetos herdados de sua família, dois cachorros- , ciente de que a cidade que faz parte de seu sangue deixou de existir.
Nova Orleans faz parte de meu sangue, também. Consigo identificar meus antepassados até um registro de um casamento que aconteceu na catedral St. Louis em 1762. Segundo a história que se conta na família, os descendentes do francês que se casou nessa ocasião fundaram Buras, Louisiana, que foi justamente onde o Katrina primeiro chegou em terra.
Enquanto Alison olhava seus e-mails e percorria websites para descobrir o que se passou com amigos de quem ainda não tivera notícias, uma mulher se sentou à nossa frente. Ela é de Lacombe, Louisiana, e ainda não conseguira saber se seu filho, sua nora e seu neto estavam vivos. Enxerguei nos olhos dela a mesma luz que eu vira nos de Alison -uma sombra tão intensa que obscurecia a cor de suas íris. Estavam afogadas.
Fui olhar meus próprios e-mails. Respondi a mensagens de amigos e familiares preocupados com minha segurança (a extremidade esquerda do furacão atingiu minha cidade, Baton Rouge, deixando uma confusão de destroços e cortes de energia). Evitei as mensagens que tinham anexos. Eu não estava preparada para ver imagens da cidade afogada. A imaginação já é avassaladora o suficiente.
Quero me recordar de Nova Orleans como ela era, protegida contra a justaposição com o presente. Minha primeira memória. Meu avô, homem de voz tão grande quanto era seu coração, era maquinista de trem. Ele e minha avó nos trouxeram -eu, meu irmão e minha irmã menores- para passar uma noite na cidade. Dormimos num hotel pequeno, mal iluminado, que tinha o mesmo cheiro do giz de cera eu eu tinha usado na viagem de duas horas.
Na manhã seguinte, tomamos o café da manhã num restaurante na Canal Street. Os funcionários conheciam meu avô pelo nome e nos trouxeram uma refeição enorme. Nunca mais eu comi "grits" [cereais moídos] tão amanteigados e macios quanto aqueles. Fiquei estarrecida com as vitrines das lojas na Canal -enormes vitrines nas quais se viam roupas, perucas, calçados e artigos esportivos.
Nosso passeio no bonde da St. Charles Avenue pareceu durar horas e horas felizes, com o som das rodas passando pelos trilhos formando uma harmonia diferente daquela do trem de meu avô. Eu queria poder lembrar a primeira visão que tive dos carvalhos da St. Charles e daquelas belas residências, mas o que ficou na minha memória, além do som e da imagem dos rostos tranqüilos dos meus familiares, foi a sensação da brisa acariciando meu rosto de 8 anos de idade.
Só fui voltar a Nova Orleans quando eu estava na faculdade. Fui lá não como turista mas como militante dos direitos reprodutivos. Naquele fim de semana eu dirigi o carro, enquanto Alison me orientava pela cidade que ela conhecia tão bem. Amei os nomes das cidades, uma poesia silábica -Prytania, Euterpe, Tchoupitoulas. Passamos a noite com uma moça que vivia num velho e batido edifício com pisos de madeira, janelas de vidrilhos e paredes de gesso descascando. Comemos um jantar delicioso e pouco caro na Taqueria Corona, na Magazine Street, um restaurante mexicano pequeno ao qual eu retornaria muitas vezes.
Na manhã seguinte, outra jovem, cujo nome e cuja pele representavam um misto de sua ascendência indígena e alemã, nos levou de carro até o local do evento. Foi minha primeira visão do Bairro Francês, suas ruas estreitas ladeadas por edifícios que talvez tivessem sido visitados por meus antepassados, seus balcões de ferro trabalhado aparentando ser ao mesmo tempo frágeis e fixos pela resistência do tempo.
Nos anos seguintes voltei a Nova Orleans muitas vezes. Aprendi a linguagem de uma cidade fundada antes de os EUA declararem sua independência: o "terreno neutro" era a linha do meio da rua, algumas pessoas ainda chamavam as calçadas de "banquettes", e as orientações aos motoristas eram dadas com base na relação que o destino guardava com o rio Mississippi e o lago Pontchartrain.
A St. Charles Avenue nunca deixava de me fascinar. A cobertura de carvalhos deixava passar manchas de sol sobre as pessoas que passeavam pelas calçadas, às vezes protegendo aquelas que esperavam pela passagem dos bondes.
A Universidade Tulane, em frente ao parque, era cinzenta e robusta. A cada visita eu enxergava um detalhe que não notara antes em muitas das belas casas, um misto eclético da história da arquitetura, tanto quanto da cidade em si. Eu adorava a paisagem estranhamente ondulante que levava até a Biblioteca Memorial Milton H. Latter, que no passado tinha sido a mansão de uma estrela do cinema mudo, e apreciava até que ponto a autenticidade do prédio seguia intacta.
Fiz algumas das melhores refeições de minha vida naquela cidade... no Bella Luna, Lola's, Cafe Degas, Jacquimo's, Antoine's, Delmonico's, Nirvana, Bennachin. Devorei as pralinas [amêndoas com cobertura] da Tee-Eva's, macias e gostosas como as que minha avó materna fazia, e as "bolas de neve" servidas como devem ser, com o gelo em raspas tão finas que derretem a caminho da língua.
Não sendo uma pessoa que gosta de multidões, evitei passar o Mardi Gras em Nova Orleans durante toda minha vida, até fevereiro deste ano. Três meses antes disso a Atria Books assinara contrato comigo para publicar meu primeiro romance, ambientado em Nova Orleans na década de 1920 e na Louisiana de hoje. A única data em que meu editor-executivo e o publisher poderiam me encontrar era no dia de Mardi Gras (a terça-feira de carnaval). Depois de um motorista inteligente e calmo ter nos levado a nosso hotel, recebemos, não sei como, ingressos para uma festa particular no Royal Sonesta Hotel. Passamos três horas atirando contas aos transeuntes, espantados com as fantasias, a farra e o número de turistas de seios de fora. O cheiro de álcool foi se intensificando enquanto a tarde esquentava, e uma chuva repentina de verão evocou o calor da Bourbon Street.
Minha última visita à cidade aconteceu em 12 de agosto. Visitei livrarias em Metairie e Nova Orleans, preparando o lançamento de meu romance. Eu pretendera levar minha máquina fotográfica para fazer fotos dos lugares mencionados no livro. Se eu encontrasse leitores durante minhas viagens, queria dividir com eles as fotos dos marcos da cidade que os personagens tanto gostavam -e eu também. Eu não fazia idéia de que não poderia mais voltar ao lugar que achava tão belo, tão singular, tão vivo.
Acabo de me dar conta de que escrevi isto no passado. Não era essa minha intenção. Eu não sabia que o choque passara, me deixando com essa dor no coração em tão pouco tempo.
Enquanto penso nos lugares pelos quais passei, me vejo refletindo sobre as pessoas de Nova Orleans. Miss Tee-Eva, que fazia aquelas pralinas. Aaron, da loja de antigüidades Top Drawer, que me vendeu várias peças ao longo dos anos. As centenas de moradores da cidade com aquele sotaque inconfundível, com sua aspereza inócua tão semelhante à do Brooklyn, em Nova York, misturado com as contrações gramaticais criativas e o esticar das sílabas que é típico do sul. As centenas de milhares de pessoas que faziam a cidade vibrar -sua diversidade, seus talentos, suas vidas.
Sempre senti tenacidade e orgulho nas pessoas de Nova Orleans. Como se, não importa quais fossem suas diferenças, todas soubessem que viviam em um dos lugares mais especiais do mundo. A própria cidade -os clubes de jazz, as mansões, as casas simples de madeira, as lojas, os parques- era simplesmente o corpo dentro do qual esse espírito vivia.
Ainda é cedo para dizer como Nova Orleans será ressuscitada. As palavras que uso são propositais. O Katrina não apenas devastou Nova Orleans -tirou a vida da cidade. Ainda não consigo compreender e aceitar que milhares de pessoas morreram e que, com o atraso no fornecimento de água, comida, abrigo e proteção, podemos perder milhares mais.
Quando Alison e eu saímos do Starbucks, eu não fazia idéia de que, horas depois, ela iria partir para ainda mais longe ao norte. A tempestade a trouxe para minha porta, e o pós-tempestade a levou para longe. Ela deixou minha casa sabendo que sua preciosa residência no estilo Arts & Crafts, construída por volta de 1911, continuava seca e em pé, tendo sido erguida na beira da tigela que é Nova Orleans. Ela partiu com a esperança de que vários amigos tivessem sido retirados e sabendo que muitos outros estavam vivos e em segurança. Quando eu me despedi de Alison, sabia que essa não seria a última vez que a veria, mas que a espera pode ser longa. Reconstruir uma vida leva tempo. Temos saudades de você, Nova Orleans. Volte logo.


Tradução de Clara Allain


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