|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
DEPOIMENTOS/NOVA ORLEANS
Temos saudades de você, volte logo
RONLYN DOMINGUE
ESPECIAL PARA O "INDEPENDENT"
Três dias depois de o furacão
Katrina ter deixado Nova Orleans, abri meu laptop num Starbucks situado a algumas quadras
de onde moro, a 110 quilômetros a
oeste da devastação. Estava a meu
lado minha amiga Alison, que ficou na cidade durante a tempestade e fugiu na manhã seguinte.
Ela chegou a minha casa sem ser
anunciada, carregando tudo que
coube no carro -um laptop, roupas, comida, objetos herdados de
sua família, dois cachorros- ,
ciente de que a cidade que faz parte de seu sangue deixou de existir.
Nova Orleans faz parte de meu
sangue, também. Consigo identificar meus antepassados até um
registro de um casamento que
aconteceu na catedral St. Louis
em 1762. Segundo a história que
se conta na família, os descendentes do francês que se casou nessa
ocasião fundaram Buras, Louisiana, que foi justamente onde o Katrina primeiro chegou em terra.
Enquanto Alison olhava seus e-mails e percorria websites para
descobrir o que se passou com
amigos de quem ainda não tivera
notícias, uma mulher se sentou à
nossa frente. Ela é de Lacombe,
Louisiana, e ainda não conseguira
saber se seu filho, sua nora e seu
neto estavam vivos. Enxerguei
nos olhos dela a mesma luz que eu
vira nos de Alison -uma sombra
tão intensa que obscurecia a cor
de suas íris. Estavam afogadas.
Fui olhar meus próprios e-mails. Respondi a mensagens de
amigos e familiares preocupados
com minha segurança (a extremidade esquerda do furacão atingiu
minha cidade, Baton Rouge, deixando uma confusão de destroços
e cortes de energia). Evitei as
mensagens que tinham anexos.
Eu não estava preparada para ver
imagens da cidade afogada. A
imaginação já é avassaladora o
suficiente.
Quero me recordar de Nova Orleans como ela era, protegida contra a justaposição com o presente.
Minha primeira memória. Meu
avô, homem de voz tão grande
quanto era seu coração, era maquinista de trem. Ele e minha avó
nos trouxeram -eu, meu irmão e
minha irmã menores- para passar uma noite na cidade. Dormimos num hotel pequeno, mal iluminado, que tinha o mesmo cheiro do giz de cera eu eu tinha usado
na viagem de duas horas.
Na manhã seguinte, tomamos o
café da manhã num restaurante
na Canal Street. Os funcionários
conheciam meu avô pelo nome e
nos trouxeram uma refeição
enorme. Nunca mais eu comi
"grits" [cereais moídos] tão
amanteigados e macios quanto
aqueles. Fiquei estarrecida com as
vitrines das lojas na Canal
-enormes vitrines nas quais se
viam roupas, perucas, calçados e
artigos esportivos.
Nosso passeio no bonde da St.
Charles Avenue pareceu durar
horas e horas felizes, com o som
das rodas passando pelos trilhos
formando uma harmonia diferente daquela do trem de meu
avô. Eu queria poder lembrar a
primeira visão que tive dos carvalhos da St. Charles e daquelas belas residências, mas o que ficou na
minha memória, além do som e
da imagem dos rostos tranqüilos
dos meus familiares, foi a sensação da brisa acariciando meu rosto de 8 anos de idade.
Só fui voltar a Nova Orleans
quando eu estava na faculdade.
Fui lá não como turista mas como
militante dos direitos reprodutivos. Naquele fim de semana eu dirigi o carro, enquanto Alison me
orientava pela cidade que ela conhecia tão bem. Amei os nomes
das cidades, uma poesia silábica
-Prytania, Euterpe, Tchoupitoulas. Passamos a noite com
uma moça que vivia num velho e
batido edifício com pisos de madeira, janelas de vidrilhos e paredes de gesso descascando. Comemos um jantar delicioso e pouco
caro na Taqueria Corona, na Magazine Street, um restaurante mexicano pequeno ao qual eu retornaria muitas vezes.
Na manhã seguinte, outra jovem, cujo nome e cuja pele representavam um misto de sua ascendência indígena e alemã, nos levou de carro até o local do evento.
Foi minha primeira visão do Bairro Francês, suas ruas estreitas ladeadas por edifícios que talvez tivessem sido visitados por meus
antepassados, seus balcões de ferro trabalhado aparentando ser ao
mesmo tempo frágeis e fixos pela
resistência do tempo.
Nos anos seguintes voltei a Nova Orleans muitas vezes. Aprendi
a linguagem de uma cidade fundada antes de os EUA declararem
sua independência: o "terreno
neutro" era a linha do meio da
rua, algumas pessoas ainda chamavam as calçadas de "banquettes", e as orientações aos motoristas eram dadas
com base na relação que o destino
guardava com o
rio Mississippi e o
lago Pontchartrain.
A St. Charles
Avenue nunca
deixava de me fascinar. A cobertura
de carvalhos deixava passar manchas de sol sobre
as pessoas que
passeavam pelas
calçadas, às vezes
protegendo aquelas que esperavam
pela passagem dos bondes.
A Universidade Tulane, em
frente ao parque, era cinzenta e
robusta. A cada visita eu enxergava um detalhe que não notara antes em muitas das belas casas, um
misto eclético da história da arquitetura, tanto quanto da cidade
em si. Eu adorava a paisagem estranhamente ondulante que levava até a Biblioteca Memorial Milton H. Latter, que no passado tinha sido a mansão de uma estrela
do cinema mudo, e apreciava até
que ponto a autenticidade do prédio seguia intacta.
Fiz algumas das
melhores refeições de minha vida naquela cidade... no Bella Luna, Lola's, Cafe
Degas, Jacquimo's, Antoine's,
Delmonico's, Nirvana, Bennachin.
Devorei as pralinas [amêndoas
com cobertura]
da Tee-Eva's, macias e gostosas como as que minha
avó materna fazia,
e as "bolas de neve" servidas como
devem ser, com o
gelo em raspas tão
finas que derretem a caminho da língua.
Não sendo uma pessoa que gosta de multidões, evitei passar o
Mardi Gras em Nova Orleans durante toda minha vida, até fevereiro deste ano. Três meses antes disso a Atria Books assinara contrato
comigo para publicar meu primeiro romance, ambientado em
Nova Orleans na década de 1920 e
na Louisiana de hoje. A única data
em que meu editor-executivo e o
publisher poderiam me encontrar
era no dia de Mardi Gras (a terça-feira de carnaval). Depois de um
motorista inteligente e calmo ter
nos levado a nosso hotel, recebemos, não sei como, ingressos para
uma festa particular no Royal Sonesta Hotel. Passamos três horas
atirando contas aos transeuntes,
espantados com as fantasias, a
farra e o número de turistas de
seios de fora. O cheiro de álcool
foi se intensificando enquanto a
tarde esquentava, e uma chuva repentina de verão evocou o calor
da Bourbon Street.
Minha última visita à cidade
aconteceu em 12 de agosto. Visitei
livrarias em Metairie e Nova Orleans, preparando o lançamento
de meu romance. Eu pretendera
levar minha máquina fotográfica
para fazer fotos dos lugares mencionados no livro. Se eu encontrasse leitores durante minhas
viagens, queria dividir com eles as
fotos dos marcos da cidade que os
personagens tanto gostavam -e
eu também. Eu não fazia idéia de
que não poderia mais voltar ao lugar que achava tão belo, tão singular, tão vivo.
Acabo de me dar conta de que
escrevi isto no passado. Não era
essa minha intenção. Eu não sabia
que o choque passara, me deixando com essa dor no coração em
tão pouco tempo.
Enquanto penso nos lugares pelos quais passei, me vejo refletindo sobre as pessoas de Nova Orleans. Miss Tee-Eva, que fazia
aquelas pralinas. Aaron, da loja de
antigüidades Top Drawer, que me
vendeu várias peças ao longo dos
anos. As centenas de moradores
da cidade com aquele sotaque inconfundível, com sua aspereza
inócua tão semelhante à do
Brooklyn, em Nova York, misturado com as contrações gramaticais criativas e o esticar das sílabas
que é típico do sul. As centenas de
milhares de pessoas que faziam a
cidade vibrar -sua diversidade,
seus talentos, suas vidas.
Sempre senti tenacidade e orgulho nas pessoas de Nova Orleans.
Como se, não importa quais fossem suas diferenças, todas soubessem que viviam em um dos lugares mais especiais do mundo. A
própria cidade -os clubes de
jazz, as mansões, as casas simples
de madeira, as lojas, os parques-
era simplesmente o corpo dentro
do qual esse espírito vivia.
Ainda é cedo para dizer como
Nova Orleans será ressuscitada.
As palavras que uso são propositais. O Katrina não apenas devastou Nova Orleans -tirou a vida
da cidade. Ainda não consigo
compreender e aceitar que milhares de pessoas morreram e que,
com o atraso no fornecimento de
água, comida, abrigo e proteção,
podemos perder milhares mais.
Quando Alison e eu saímos do
Starbucks, eu não fazia idéia de
que, horas depois, ela iria partir
para ainda mais longe ao norte. A
tempestade a trouxe para minha
porta, e o pós-tempestade a levou
para longe. Ela deixou minha casa
sabendo que sua preciosa residência no estilo Arts & Crafts,
construída por volta de 1911, continuava seca e em pé, tendo sido
erguida na beira da tigela que é
Nova Orleans. Ela partiu com a
esperança de que vários amigos
tivessem sido retirados e sabendo
que muitos outros estavam vivos
e em segurança. Quando eu me
despedi de Alison, sabia que essa
não seria a última vez que a veria,
mas que a espera pode ser longa.
Reconstruir uma vida leva tempo.
Temos saudades de você, Nova
Orleans. Volte logo.
Tradução de Clara Allain
Texto Anterior: Tarefa monumental de recuperação aguarda moradores de Nova Orleans Próximo Texto: Quem é: Domingue retrata a Nova Orleans dos anos 20 Índice
|