São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ÁFRICA DO SUL

Segundo pesquisa, 20% dos negros do país dizem que a vida era melhor sob o governo branco, contra 8% em 1995

"Saudade" do apartheid cresce entre negros

RACHEL SWARNS
DO "THE NEW YORK TIMES", EM SOWETO

Por décadas, o fervor da luta contra o apartheid queimava nas ruas tortuosas desta cidade. As pessoas cantaram e dançaram de alegria, neste empobrecido município negro, quando o apartheid enfim chegou ao final, em 1994.
Mas, oito anos após a África do Sul ter eleito seu primeiro governo negro, um número pequeno mas crescente de negros vem argumentando algo antes inimaginável -que a vida era melhor sob o domínio dos brancos.
Vinte por cento dos negros entrevistados em uma pesquisa divulgada neste mês disseram que aprovavam a maneira pela qual a África do Sul era governada durante o apartheid, ante os 8% registrados em 1995. Os analistas políticos advertem que isso indica um nível preocupante de decepção entre as pessoas que elegeram Nelson Mandela como o primeiro presidente negro do país, com tantas esperanças, em 1994.
A maior parte dos negros claramente não quer a volta dos velhos tempos. Na pesquisa, conhecida como Afrobarômetro e conduzida pelo Instituto pela Democracia na África do Sul, pelo Centro de Democracia e Desenvolvimento de Gana e pela Universidade Estadual de Michigan, cerca de 60% dos entrevistados se dizem a favor do sistema político atual, que deu aos negros o direito de voto e expandiu seu acesso a habitação, água e eletricidade.
Hoje, os benefícios da era posterior ao apartheid parecem claros: há rostos negros no Parlamento e nas empresas, escolas e bairros integrados e uma elite negra cujas fileiras vêm crescendo rapidamente. Mas a decepção está claramente em ascensão entre os negros pobres, as classes trabalhadoras e as pessoas com educação deficiente. Funcionários de governos ocidentais elogiaram a administração negra sul-africano por sua política fiscal conservadora, mas o país perdeu milhares de empregos nos últimos anos, com a progressiva liberalização de uma economia antes protegida.
O desemprego é de quase 30%, ante os 17% de 1995. Não é incomum ouvir negros comentando com saudade a era do apartheid, quando havia muitos empregos e poucas demissões.
Ninguém está sugerindo que os negros estejam ansiosos pelo retorno da opressão racial e da falta de direitos políticos. Mas a era de domínio branco às vezes parece satisfatória em comparação com o atual nível de desemprego e criminalidade e diante da competição por empregos com imigrantes estrangeiros.
"As coisas eram melhores no passado", diz Kala Kgamedi, 33, que perdeu seu emprego como vendedor dois anos atrás. Ele ficou desempregado por todo esse tempo, antes de arranjar um novo trabalho, o qual oferece poucos benefícios médicos e não permite que ele use um carro da empresa, ao contrário do anterior. "Na época do apartheid as coisas funcionavam suavemente", diz Kgamedi, que trabalha em uma agência de despachantes. "Jamais tínhamos essas reacomodações. Agora, a maior parte das pessoas está desempregada. E, quando se arranja um emprego, ele é sempre de tempo parcial, nunca permanente. Eu, por mim, gostaria de voltar à era do apartheid."
Natale Koanaite, 27, motorista, diz que as grandes esperanças que os pobres tinham ao eleger um governo negro estão desaparecendo. "O voto supostamente mudaria a vida das pessoas que vivam em desvantagem", disse. "Mas depois da eleição, o que as pessoas ganharam? Não há muita coisa mudando em Soweto."
O Congresso Nacional Africano, partido governante, reconhece a crescente insatisfação. Nos últimos cinco anos, o número de filiados do partido caiu em cinco das nove Províncias do país. Neste mês, Kgalema Motlanthe, secretário-geral da legenda, advertiu que havia sério risco de perder o apoio dos eleitores jovens.
Menos de metade dos eleitores entre os 18 e os 25 anos votou na eleição presidencial de 1999. Funcionários do Congresso Nacional Africano temem que os jovens insatisfeitos, muitas vezes desempregados e sem muitas lembranças dos anos de apartheid, possam ser seduzidos por outros partidos políticos, brancos ou negros.
"Se como sociedade e movimento fracassarmos em conscientizar as pessoas e mobilizar os estudantes, os jovens trabalhadores e os intelectuais, outras forças surgirão para ocupar esse vazio", advertiu Motlanthe. Ele disse que a fraqueza do partido em comunicar ao público suas posições sobre questões essenciais o tornara vulnerável. "Isso deu espaço tanto à direita quanto à ultra-esquerda para que atacassem o movimento sobre questões que variam do ritmo de solução do desafio do desemprego à pobreza", disse.
Os negros insatisfeitos não desejam um presidente branco. Na pesquisa Afrobarômetro, dos 2.400 entrevistados em todo o país, menos de 3% dos eleitores negros pretendiam votar em um partido branco. A pesquisa, cuja margem de erro é de dois pontos percentuais, sugere que os brancos não desejam um novo governo branco, mas sentem falta do que percebiam como eficiência da velha administração.
"Não é nostalgia do apartheid em si, mas da maneira que as coisas pareciam funcionar sob o apartheid", explica Robert Mattes, analista político da Universidade da Cidade do Cabo e responsável pelo levantamento Afrobarômetro. "Mas eles não têm para onde ir", disse Mattes sobre os eleitores negros decepcionados. "As pessoas que não gostam do desempenho do governo não vêem alternativas. Isso gera a possibilidade de uma queda no comparecimento às urnas."
Na cidade de Soweto, uma comunidade negra, em um bairro de casas apertadas e de sonhos esmaecidos, Sabelo Sibanda, 28, já decidiu oficialmente não votar.
Ele se formou em direito e está procurando emprego há um ano. Diz que não suportaria votar em um partido branco, mas não pretende apoiar o Congresso Nacional Africano, que parece tão distante de seus problemas.
"Queríamos contribuir para o nosso país", diz Sibanda, que vive com os pais e às vezes imagina por que foi tolo a ponto de ter sonhos tão grandiosos. "Lutamos por tanto tempo pelos direitos iguais, pelo respeito, para sermos tratados como gente. Agora fico imaginando se a luta valeu a pena."
"Aqui estou eu, jovem e qualificado, e não consigo emprego. Por que votar se não me beneficio com esse governo? Eles dizem que estão tentando combater a pobreza, mas eu não vejo nada disso."



Texto Anterior: Intifada
Próximo Texto: Biotecnologia: Seita anuncia seu segundo "clone"
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.