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ENTREVISTA
Para o pesquisador Charles Kupchan, a Europa unificada e rica será o grande desafio ao predomínio americano
Nova tese projeta fim da hegemonia dos EUA
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
Um mundo dominado por uma
só superpotência é insustentável a
longo prazo, e dramáticas mudanças no cenário internacional e
na composição do eleitorado
americano provocarão o fim da
hegemonia dos EUA.
A análise é de Charles A. Kupchan, professor na Universidade
de Georgetown (Washington),
pesquisador no Council on Foreign Relations e autor de, entre
outros, "The End of the American
Era: U.S. Foreign Policy and the
Geopolitics of the Twenty-First
Century" (o fim da era americana:
a política externa dos EUA e a
geopolítica do século 21).
Seu livro vem provocando acaloradas discussões nas esferas
acadêmica e política americanas
desde seu lançamento, em outubro passado. Afinal, para o autor,
dois fenômenos estão levando o
planeta ao multilateralismo.
Primeiro, o fortalecimento da
Europa graças à consolidação da
União Européia (UE), que ganha
força política e econômica e deverá equiparar-se aos EUA logo. Segundo, o declínio do apoio público americano ao internacionalismo, tornando cada vez mais difícil para os EUA manter seus compromissos e carregar o peso de zelar pela atual ordem mundial.
Leia a seguir trechos da entrevista de Kupchan, por telefone, à
Folha.
Folha - Em seu livro mais recente,
"The End of the American Era: U.S.
Foreign Policy and the Geopolitics
of the Twenty-First Century", o sr.
prevê que a Europa será o próximo
rival dos EUA. Como isso ocorrerá?
Charles A. Kupchan - Atualmente, a visão mais comum é que o
provável novo rival do poder
americano é o islã ou a China, mas
pouca gente, especialmente nos
EUA, presta atenção à Europa.
Para mim, apesar das aparências,
há uma mudança revolucionária
ocorrendo na Europa, que, gradualmente, está dando à UE um
maior peso coletivo, mais autoconfiança e coerência.
Assim, se houver um contrapeso ao poder americano na cena
global, ele será uma UE com uma
riqueza coletiva comparável à dos
EUA ou ainda mais elevada e com
um peso diplomático crescente,
pois seus Estados-nações estão
dando mais poder a Bruxelas.
Ademais, a distância política entre a UE e os EUA parece estar aumentando por conta desse fortalecimento europeu e do comportamento unilateralista e belicoso
americano.
Folha - O sr. crê, portanto, que a
política externa atual dos EUA possa prejudicar os interesses do país
a longo prazo?
Kupchan - Sim. Atualmente, os
EUA estão procurando obter ganhos a curto prazo em detrimento
de seus interesses a longo prazo.
Os EUA podem considerar-se
em melhor saúde econômica porque se recusaram a assinar o Protocolo de Kyoto [que criou metas
para o combate do efeito estufa", e
os soldados americanos podem
sentir-se mais imunes à Justiça internacional porque Washington
não apoiou a criação do Tribunal
Penal Internacional. Porém, a
longo prazo, se os EUA não mais
estiverem no topo do mundo,
precisaremos de instituições fortes para que possa haver uma administração coletiva dos problemas internacionais.
O problema é que, infelizmente,
os EUA parecem buscar minar essas instituições, afastando-se delas. Para não correr esse risco,
Washington deveria alterar o rumo de sua política externa, privilegiando o multilateralismo e resistindo a sua veleidade unilateralista, pois temo que os EUA estejam pondo em risco sua mais profunda forma de poder: sua legitimidade internacional.
Afinal, ainda há no mundo o
sentimento de que os EUA são
uma superpotência benigna.
Contudo, em minhas viagens ao
redor do mundo, venho percebendo que, nos últimos tempos,
Washington provoca surpresas
negativas não apenas nos países
muçulmanos mas também em alguns de seus maiores aliados. Trata-se de uma constatação bastante
preocupante para os americanos.
Folha - O sr. defende a tese de que
dois fenômenos estão levando o
mundo de volta a um certo multilateralismo. O primeiro é o fortalecimento da UE. Qual é o segundo?
Kupchan - O outro fenômeno é a
erosão do que chamo de internacionalismo liberal. Ou seja, uma
forma de internacionalismo mais
de centro, moderada e multilateralista. Atualmente, vejo os EUA
deixando o centro e gravitando
lentamente para os dois extremos: o unilateralismo e o neo-isolacionismo.
Depois dos atentados de 11 de
setembro de 2001, não se vê mais
isolacionismo no centro da política americana, pois as vozes que
preconizam o isolamento dos
EUA foram caladas pelo terrorismo. Todavia não creio que essas
vozes tenham sido caladas para
sempre.
Assim, é importante ter em
mente quem era George W. Bush
antes dos ataques aos EUA. Ele é o
homem que, mesmo antes de ser
eleito, já dizia que a América não
poderia ser tudo para todos os
países, que os soldados americanos deveriam deixar os Bálcãs e
que Washington teria de parar de
tentar negociar a paz em inúmeros conflitos regionais. Bush chegou até a afirmar que os EUA deveriam focalizar sua atenção e sua
energia no Ocidente.
Creio que, com o tempo, essas
inclinações venham a ganhar força novamente, visto que se trata
do modo de pensar dos conservadores da América profunda, que,
na verdade, são os principais eleitores de George W. Bush e de seu
Partido Republicano.
Folha - Vivíamos num mundo melhor durante os anos do democrata
Bill Clinton (1993-2001)?
Kupchan - Creio que sim. Porém
o que há hoje nos EUA não é um
fenômeno fugaz que só existirá
durante o governo de Bush. Afinal, o modo de pensar do atual
presidente apenas reflete mudanças mais profundas que ocorrem
na sociedade, na política e na demografia americanas.
Vários aspectos têm de ser analisados. As regiões do país que
mais crescem atualmente são as
partes do sul e do oeste que são
predominantemente agrícolas.
Trata-se de duas parcelas do país
que, tradicionalmente, são muito
pouco favoráveis ao internacionalismo liberal e ao multilateralismo. Essas regiões são mais apegadas à América Central e à América do Sul normalmente.
Essa mudança em direção a
uma política externa mais comedida e isolacionista ocorrerá em
parte por conta do crescimento
proporcional da população hispano-americana. Na segunda metade deste século, cerca de um terço
da população americana será de
origem hispânica.
Essas pessoas tendem a viver
em Estados muito importantes no
que se refere ao sistema eleitoral
americano, como o Texas, a Califórnia e a Flórida, o que também
contribuirá para mudar o cenário
político.
Além disso, os americanos de
origem hispânica deverão defender uma política externa mais voltada para o Ocidente, sobretudo
para a América Latina, e menos
preocupada com a manutenção
da paz em todo o planeta.
Com tudo isso, quero dizer que
o que havia antes dos atentados
terroristas de setembro de 2001
não era apenas uma idiossincrasia passageira de Bush, mas uma
mudança mais profunda, que reflete as alterações na composição
do eleitorado americano.
Folha - Como a cultura política
dos EUA influencia sua política externa atualmente?
Kupchan - Indubitavelmente, a
cultura política é um fator muito
importante na concepção de estratégias. Se observarmos os primórdios da história americana,
veremos que o país tinha uma cultura política que era tanto unilateralista quanto isolacionista.
Para os fundadores da nação, a
América não deveria envolver-se
em disputas pelo poder. Contudo,
ao mesmo tempo, eles pensavam
que, se isso fosse inevitável, o país
deveria fazê-lo conforme seu modo de ver as coisas, não segundo
uma lógica internacional. Isso reflete a hostilidade dos americanos
da época às suas próprias instituições e, principalmente, às instituições internacionais.
Na realidade, até a Segunda
Guerra Mundial, a América não
tinha abandonado verdadeiramente seu isolacionismo. Foi
após a guerra que os EUA apoiaram realmente a criação da ONU,
da Otan [aliança militar ocidental", do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional.
Atualmente, há um retorno a alguns desses impulsos profundos
dos americanos, a algumas tradições que foram esquecidas durante a Guerra Fria.
Mas, sem a ameaça que a URSS
representava à época e com a mudança demográfica que mencionei acima, creio que a política externa dos EUA venha a parecer-se
mais com a que existia antes do
ataque japonês a Pearl Harbor
[1941" que com a dos últimos 50
anos.
Muita gente pensa que a ameaça
terrorista obrigará Washington a
manter uma política externa
agressiva, porém não acredito
que isso seja verdade. Afinal, a
ameaça terrorista é difusa e fará
com que os EUA ataquem os
"bárbaros" sem se esquecer de levantar barreiras de proteção. O
isolacionismo faz parte dessa segunda tendência.
Folha - Como será o mundo sem a
hegemonia americana?
Kupchan - Será um mundo de
ninguém. O fim da era americana
não abrirá caminho para uma outra era, já que a cena internacional
não será dominada por nenhum
Estado. Haverá um maior equilíbrio no que se refere ao poder.
A UE será importante, a China
também. A longo prazo, mesmo
grandes países em desenvolvimento, como a Índia e o Brasil, terão sua esfera de poder mais bem
definida. Assim, o poder americano não desaparecerá, não será
eclipsado pela UE, mas o mundo
será mais multilateralista.
O mundo será mais difícil de ser
administrado, pois um mundo
com um só capitão é mais fácil de
ser gerido do que um com inúmeros capitães. Creio que o maior
desafio para os EUA hoje é administrar a transição do mundo
atual para uma cena internacional
com múltiplos centros de poder.
Todavia acredito que os EUA
estejam fazendo tudo errado a esse respeito. A doutrina de segurança de Bush, por exemplo, argumenta que o objetivo dos EUA
é manter seu domínio mundial,
resistindo ao aparecimento de
qualquer contrapeso que possa
ameaçar sua hegemonia. Paradoxalmente, isso provocará o surgimento de vários pontos de resistência à política americana.
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