UOL


São Paulo, quarta-feira, 05 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Medo da guerra se espalha entre moradores de Bagdá

KIM SENGUPTA
DO ""THE INDEPENDENT", EM BAGDÁ

Eles sabem que a guerra é inevitável, que muitos vão morrer e que os sobreviventes terão suas vidas mudadas para sempre. Eles têm medo, sobretudo, de que aconteça em Bagdá algo calamitoso, terrível até mesmo para os padrões vigentes neste país violento.
O otimismo cauteloso percebido há algumas semanas -a confiança de que o retorno dos inspetores da ONU pudesse impedir o conflito- se evaporou. Comenta-se que as duas cidades que arcarão com o peso maior serão Tikrit, cidade natal de Saddam Hussein e sua base de poder, que os EUA já ameaçaram pulverizar, e Bagdá, onde o governo vai montar sua resistência final.
Todas as manhãs, os habitantes de Bagdá vêem comboios de inspetores da ONU partindo em suas buscas. Além disso, eles podem usar um dos cibercafés na cidade para ler na imprensa ocidental notícias sobre como Washington já traçou planos para o Iraque sob a invasão e a ocupação.
A versão mais recente desses relatos, de acordo com o ""New York Times", diz que a CIA e o Pentágono teriam identificado 2.000 integrantes da elite iraquiana e os classificado em duas categorias: aqueles que devem ser julgados por crimes de guerra e os que podem ser persuadidos a voltar-se contra o regime e a ajudar a administrar o Iraque pós-Saddam.
Fariam parte da primeira categoria militares de alta patente, funcionários de alto nível do aparelho de segurança e inteligência, líderes do Partido Baath, membros da família de Saddam e outras pessoas ""inextricavelmente ligadas" a ele. Quanto ao próprio líder iraquiano, parece ocupar uma categoria só dele, e comenta-se que George W. Bush estaria disposto a revogar a ordem que proíbe o assassinato político de dirigentes estrangeiros.
No café Shah Bandar, enquanto via imagens na TV dos inspetores vasculhando mais um ""local suspeito" em busca de armas de destruição em massa, o professor Karim Hassan Noor, 42, balançou a cabeça. "Tudo é só para as aparências. Não importa se eles não encontrarem nada -quando estiverem prontos, os EUA encontrarão uma desculpa para atacar."
Noor só tem maus presságios quanto ao futuro. ""Já conhecemos a guerra neste país, mas desta vez será muito pior", prevê. ""Vivemos há anos sob as sanções, e agora seremos bombardeados por Bush. Mas há outros problemas internos, também. Há elementos que vão tentar tirar vantagem da situação. Todo o mundo aqui tem armas, e há muitas contas que precisam ser acertadas."
O engenheiro desempregado Majid Hussein, concorda: "Tem gente de lá que vai tentar entrar aqui. Por isso temos medo por nós mesmos e nossas famílias".
"Lá" é Saddam City, uma favela enorme a meia hora de carro do centro de Bagdá. Cerca de 40% dos 10 milhões de habitantes de Bagdá vivem na favela, e quase todos os moradores são xiitas. Os xiitas são 60% da população iraquiana, mas o poder está principalmente nas mãos da minoria sunita que, excluindo os curdos, representam 16% da população.
A favela entrou em ebulição há quatro anos, com o assassinado do grão aiatolá Al Sadr e de dois de seus filhos, crime atribuído por clérigos xiitas ao governo. Ali as pessoas vêem estranhos com receio e cautela e medem suas palavras com cuidado. Um jovem na casa dos 20 anos explicou: ""Não queremos que os americanos e britânicos ataquem. Mas há muito sofrimento aqui, sim, e muitas pessoas têm armas. Eu mesmo não vou fazer nada, mas há gente que vai fazer coisas muito ruins".
O iraquiano que falar publicamente sobre mudanças no regime deve ser muito corajoso ou insensato, e Abbas Najib não é nada disso, mas ele admite que é isso que a guerra pode provocar. "Os EUA vão querer instalar um fantoche no poder, ou, então, vão querer governar o Iraque eles mesmos", falou. ""Todos sabemos que eles querem nosso petróleo e vão tentar controlá-lo, custe o que custar. Se alguma coisa acontecesse com o presidente -e todos esperamos que não aconteça-, os iraquianos deveriam poder decidir seu próprio futuro."
Um dos principais temores de muitos é a perspectiva de serem usadas armas químicas e biológicas. A posição oficial iraquiana é de que o país não as possui mais. "É evidente que os americanos poderiam usar essas armas contra nós. Sabemos que eles possuem muitas coisas desse tipo. Isso é muito preocupante", disse Najib.
A maioria dos que podem deixar o país -diplomatas, empresários, funcionários de organizações humanitárias- pretende fazê-lo proximamente, se já não o fez. Mas essa não é uma opção à maioria dos moradores de Bagdá. "Tudo o que podemos fazer é esperar. E saber que o que vai acontecer será muito ruim", diz Noor.


Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Alemães igualam Bush a Saddam
Próximo Texto: EUA terão 300 mil militares no golfo Pérsico
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.