São Paulo, domingo, 05 de março de 2006

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ARTIGO

Índia tem encontro marcado com desenvolvimento humano

KEVIN WATKINS

Na véspera da independência da Índia, Jawarhalal Nehru, o primeiro primeiro-ministro do país, pronunciou uma frase célebre em que falou em cumprir "um encontro marcado com o destino". Parte desse encontro foi a promessa de "pôr fim à pobreza e ignorância e garantir justiça e plenitude de vida a cada homem e cada mulher".
Neste início do século 21, a Índia tem pela frente uma oportunidade sem precedentes de concretizar a visão de Nehru. O desafio consiste em fechar a grande brecha existente entre o êxito retumbante do país no aumento da prosperidade econômica e sua performance nitidamente menos impressionante no que diz respeito ao desenvolvimento humano.


A informática gerou 1 milhão de empregos, e a força de trabalho cresce em 8 milhões de pessoas por ano

Há mais de duas décadas a Índia se encontra perto do topo da superliga mundial do crescimento. O "índice hindu de crescimento" vagaroso que caracterizou as três primeiras décadas após a independência está ficando cada vez mais para trás na memória. As rendas médias vêm crescendo ao ritmo de 3% a 4% ao ano, tendo dobrado desde a metade da década de 1980. Novos e dinâmicos setores econômicos surgiram no país, mais visivelmente nos centros florescentes de alta tecnologia de Bangalore e Hyderabad. E os investimentos externos, embora ainda sejam pequenos quando comparados aos que são feitos na China, aumentaram de US$ 1 bilhão por ano em meados da década de 1990 para US$ 5 bilhões neste ano.
Medida segundo os critérios do êxito das exportações e do aumento da renda, a Índia se situa na primeira liga das histórias de sucesso com a globalização. Os indicadores de desenvolvimento humano, porém, traçam um quadro menos encorajador. A pobreza vem decrescendo em ritmo muito mais lento do que se esperava em vista da decolagem econômica do país. Uma em cada três pessoas na Índia vive com menos de US$ 1 por dia, e o país ainda abriga o maior conglomerado de pessoas subnutridas do mundo. Quase a metade das crianças indianas apresenta peso abaixo da média para sua idade -e essa cifra ajuda a explicar os 2 milhões de mortes infantis que ocorrem anualmente no país. De fato, os indicadores indianos de saúde infantil e materna se comparam desfavoravelmente aos da África Subsaariana.
No Relatório de Desenvolvimento Humano deste ano, chamamos a atenção para a distância preocupante que está emergindo entre o crescimento econômico e o progresso social. Em nenhum lugar essa brecha se evidencia mais claramente do que na mortalidade infantil, área na qual o índice de redução vem caindo nos últimos dez anos. De fato, o Bangladesh, que apresenta índice de crescimento muito menor e índice de renda mais baixo, tem taxa de mortalidade infantil inferior à da Índia.


A pobreza decresce em ritmo muito lento em vista da decolagem econômica do país

O que está dando errado? Parte do problema consiste no fato de que o crescimento econômico vem sendo erguido sobre base estreita. Consideremos o setor da informática. Por impressionante venha sendo seu desenvolvimento, o setor até agora gerou cerca de 1 milhão de empregos. Enquanto isso, a força de trabalho cresce em aproximadamente 8 milhões de pessoas por ano. É crucial ampliar e aprofundar o processo de crescimento no setor manufatureiro, que faz uso intensivo de mão-de-obra, e na zona rural.
O desafio profundo está em enfrentar diretamente as desigualdades fortemente enraizadas que freiam o progresso do desenvolvimento humano, especialmente as desigualdades profundas entre homens e mulheres, em termos de oportunidades.
Essas desigualdades começam com o nascimento, com conseqüências literalmente fatais. As meninas de entre um e cinco anos de idade enfrentam risco de mortalidade infantil 50% maior do que seus irmãos, fato que reflete as desvantagens que sofrem em termos de acesso à nutrição e à saúde. Essa estatística se traduz em 130 mil meninas "faltando" -é o número de mortes que seriam evitadas a cada ano se o índice de mortalidade de meninas fosse igual ao dos meninos. Enquanto as disparidades educacionais começam a se reduzir ao nível do ensino primário, as mulheres representam menos de 10% dos estudantes universitários da Índia.
Outras desigualdades mais amplas se sobrepõem a essas diferenças baseadas em gênero. O índice de mortalidade infantil entre os 20% mais pobres da população é três vezes maior do que entre a parcela mais rica. E existem disparidades gritantes entre os Estados do norte do país, que fazem parte do chamado "cinturão da pobreza", como Uttar Pradesh e Bihar, e os mais bem sucedidos, como Tamil Nadu e Kerala. Com uma população maior do que a da Nigéria, o Estado de Uttar Pradesh imuniza apenas uma em cada cinco crianças contra as principais doenças infantis.
Contra esse pano de fundo, a aceleração do desenvolvimento humano vai exigir mais do que um crescimento econômico sustentado, por mais crucial este possa ser. Como já escreveu o economista premiado com o Nobel Amartya Sen: "Mesmo cem Bangalores e Hyderabads não conseguirão, sozinhos, solucionar a miséria ferrenha da Índia e sua desigualdade profundamente arraigada".
No ano passado o eleitorado indiano rejeitou decisivamente um governo que buscava se reeleger com base numa campanha que alardeava a "marca Bangalore", em lugar de focalizar estratégias para uma melhor distribuição dos benefícios da prosperidade crescente. Essa eleição, que constituiu um lembrete poderoso da força da democracia indiana, revelou a extensão do sentimento de exclusão gerado pelo caminho de crescimento empreendido pela Índia.
Desde a eleição, Manmohan Singh, o primeiro-ministro do novo governo liderado pelo Partido do Congresso e um dos arquitetos originais das reformas indianas, determinou um rumo novo para o país. Foram aprovadas leis que prevêem a criação de um Esquema Nacional de Garantia de Emprego Rural, com verba de US$ 2,5 bilhões anuais -um programa extremamente ambicioso voltado às áreas rurais, através de programas de obras públicas.
No Orçamento do ano passado, o governo assinalou um foco muito maior sobre a educação, impondo um imposto adicional para financiar um aumento de US$ 1 bilhão com os gastos com a educação este ano.
Em boa parte da zona rural indiana, o sistema de saúde pública é sinônimo de não fornecimento de serviços básicos. Clínicas que não têm remédios ou funcionários treinados são corriqueiras, obrigando as famílias pobres a recorrer à assistência médica privada. Parte do problema é que o setor da saúde foi privado de verbas. Hoje a Índia gasta com a saúde menos de 1% de sua receita nacional. Se os planos atuais para o orçamento forem implementados, essa porcentagem aumentará para 3%.
São avanços importantes. Mas mesmo os mais ambiciosos orçamentos e programas governamentais vão fracassar se outros desafios ficarem sem resposta. Mudar as prioridades de gastos públicos é difícil. Mas ainda mais difícil é modificar as estruturas que obrigam os pobres indianos da zona rural, especialmente as mulheres, a uma vida inteira de desvantagens. Serão necessárias transformações fundamentais na governança -e, o que é ainda mais importante, nas atitudes públicas em relação à igualdade entre homens e mulheres.
Os desafios são imensos. Mas, neste início do século 21, o crescimento econômico e a democracia florescente proporcionam à Índia uma oportunidade de transformar-se numa verdadeira história de sucesso da globalização -uma história na qual o desenvolvimento humano dos pobres passe a ser parte do encontro marcado com o destino.

Kevin Watkins, britânico, é diretor do Escritório do Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU.

Tradução de Clara Allain


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