São Paulo, domingo, 05 de março de 2006

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MISSÃO NO CARIBE

Soldado gaúcho diz sonhar com imagens que viu de pessoas queimadas vivas; família quer processar União

Militar volta do Haiti com síndrome do pânico

LÉO GERCHMANN
DA AGÊNCIA FOLHA, EM TRÊS COROAS (RS)

A síndrome do pânico, uma doença psiquiátrica que pode ser gerada por situações de grande estresse ou ansiedade, foi o diagnóstico recebido por Tailon Ruppenthal, 22, depois de servir de junho a dezembro de 2004 como soldado na força de paz da ONU no Haiti.
Ruppenthal conversou com a reportagem da Folha na casa de sua família, na cidade gaúcha de Três Coroas, a 98 km de Porto Alegre. Seis meses antes de integrar a missão no Haiti, como voluntário, ele havia entrado no 19º Batalhão de Infantaria Motorizada de São Leopoldo (RS). Hoje, desligado do Exército brasileiro, diz estar arrependido.
"Vi gente sendo queimada viva. Tive de trocar tiros com milícias e pedir licença para as pessoas saírem da frente. Elas ficavam em meio ao fogo cruzado sem se importar com a perda da própria vida", afirma sobre a situação em Porto Príncipe, capital haitiana.
"Quando pensei que via um porco morto ao meu lado, olhei melhor e constatei se tratar de uma criança de uns três anos, completamente carbonizada. Era cheiro de podridão com a imagem de corpos a céu aberto. Certa vez, aproximei-me do que pareciam pneus em chamas de uma barricada e vi que eram pessoas."
Pessoas morrendo queimadas são personagens diárias de seus sonhos. Para dormir, o ex-soldado toma meio Lexotan, acompanhado de outros dois remédios que lhe foram ministrados pelo psiquiatra particular Luís Guilherme Streb, com quem se trata: Depakene 250, para bipolaridade, e o antidepressivo Sertralina. O valor da despesa com remédios chega a R$ 330 mensais.
Alguns sintomas da síndrome de pânico, diagnosticada no ex-soldado por Streb, são medo de sair de casa, sensação de perigo iminente, falta de ar e vertigens.
As dificuldades de Ruppenthal vão da agitação em locais fechados ao sonambulismo, passando pela impossibilidade de freqüentar ambientes com muitas pessoas e de ter um sono tranqüilo.
A mãe de Ruppenthal, Marileusa, 46, pretende recorrer à Justiça contra a União para ter ajuda no tratamento do filho e talvez pleitear uma indenização. O psiquiatra lhe disse que seu filho ficará com seqüelas do trauma ocorrido quando servia na missão militar.
Além dos males da saúde, Ruppenthal gastou os R$ 20 mil que conseguiu trazer do Haiti -boa parte com bebida alcoólica.
Ruppenthal foi dispensado do Exército em março do ano passado. Ele iria servir nas Forças Armadas pelo prazo de um ano, que poderia ser prorrogado por mais seis, o que não ocorreu. Depois disso, ele foi trabalhar como diagramador em um jornal de Três Coroas. O jornal fechou, e Ruppenthal, cuja família é de classe média, passou a trabalhar como frentista, para ganhar R$ 600 mensais por meio turno.
Com o temperamento agressivo que assumiu em razão dos problemas emocionais, ele brigou com amigos e colegas de trabalho. Atualmente, está de licença do trabalho de frentista para tratamento de saúde.
Contrariando depoimentos reservados de outros militares, Ruppenthal se diz frustrado com a atuação brasileira no Haiti. "No terceiro mês, as pessoas se cansaram de nos ver subir e descer ruas, fazendo escolta para autoridades. Trocaram aplausos por vaias, pedradas e garrafadas. Sabe o que é ver uma criança se esforçar para falar a palavra água em português apenas para pedir um copo?".
"Nos últimos dias, resolvemos juntar o que sobrou da nossa comida e para dar àquela gente. Juntamos um caminhão. Mas era pouco. Queriam que a gente fosse embora. A única trégua ocorreu quando a seleção brasileira jogou lá [em agosto de 2004]", afirma.
Ruppenthal diz que só começou a sentir os sintomas da síndrome de pânico e da depressão dois meses após voltar ao Brasil. "Lá, não dava tempo para pensar. Aqui, processei tudo e entrei em depressão. Entre nós [os soldados], comentávamos muito os rumos que as coisas estavam tomando. A maioria estava infeliz."


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