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São Paulo, sábado, 05 de abril de 2003

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RELATO

A estranha batalha pelo aeroporto de Bagdá


Onde estão os milhares de soldados que os americanos não conseguiram encontrar no deserto? Bem, estão aqui, em Bagdá, defendendo sua capital


ROBERT FISK

DO "INDEPENDENT", EM BAGDÁ

O soldado agonizava; seu companheiro entre os fedayin soluçava, por compaixão, enquanto o amigo se debatia de dor. As balas norte-americanas o haviam atingido nas pernas, e uma médica estava tentando lentamente, com cuidado infinito, remover a bota direita de seu pé. Ele se recusava a gritar, se recusava a mostrar o sofrimento pelo qual estava passando, embora seus olhos estivessem cerrados enquanto a mulher trabalhava na bota, desfazendo os laços, e temendo cortar a perna de sua calça por medo daquilo que poderia encontrar.
"Nós somos os fedayin, somos homens de orgulho", disse o amigo, testa recoberta de suor e trêmulo depois da batalha em que acabara de combater, perto do Aeroporto Internacional Saddam. "Estávamos enfrentando os americanos e os detivemos. Eles estavam se dispersando, e um oficial disse ao meu camarada que apanhasse comida e rações para os homens. Foi quando ele voltou que as balas o atingiram."
Os dois homens continuavam usando túnicas e botas pretas o uniforme dos fedayin, no qual tinham combatido a noite inteira no caminho do aeroporto.
Falaram sobre tropas norte-americanas transportadas por helicópteros descendo dos céus e fugindo assim que os iraquianos abriram fogo. Mas os norte-americanos retornaram. Não havia dúvida sobre o resultado. Do lado de fora da enfermaria de feridos de guerra no hospital Yarmouk, vi um soldado seminu numa padiola, a túnica do uniforme enrolada em seus ombros, as calças desaparecidas, uma bandagem ensanguentada no pé direito. Havia outros soldados, recolhendo nomes e equipamento, segurando os capacetes nas mãos, um deles usando um agasalho do Exército tão puído que pedaços da roupa pendiam de suas costas como trapos.
No hospital Mansour, a história era a mesma. À distância, era possível ouvir disparos de fuzis, na realidade. Mas, se os soldados iraquianos estavam feridos, mesmo assim haviam combatido contra a maior potência do mundo e sobrevivido, o que já era em si uma realização. Em um dos corredores do Yarmouk, um soldado de meia-idade, grisalho, usando um uniforme de coronel, passou mancando, apoiado em uma muleta. Mas, ao chegar ao saguão ele se posicionou com orgulho, limpando a poeira de seus ombros e de seus galões dourados.
Assim, onde estão os norte-americanos? Apenas 18 horas antes, eu passeara pelos saguões de embarque vazios do Aeroporto Internacional Saddam, onde visitei a alfândega abandonada, conversei com sete milicianos armados, encontrei o diretor do aeroporto e fui até a pista de pouso, onde dois empoeirados aviões de passageiros da Iraqi Airways jaziam tristonhos no concreto, não muito longe de um helicóptero militar igualmente envelhecido.
A captura do aeroporto de Bagdá, ou pelo menos de parte dele, fora prefigurada apenas três horas antes, quando uma reportagem da BBC anunciou que as unidades avançadas de uma divisão de infantaria mecanizada norte-americana estavam a apenas 16 quilômetros a oeste da cidade, e que outras tropas norte-americanas teriam tomado posição nos limites do aeroporto internacional. Mas eu estava 26 quilômetros a oeste da cidade. E não vi nenhum norte-americano, nenhum blindado, nenhuma alma nas pistas de pouso de um aeroporto. Ainda mais espantoso, não havia sinal da divisão da Guarda Republicana, com 12 mil combatentes, que os americanos previam enfrentar.
Seria verdade, perguntaram ao ministro da Informação iraquiano em sua entrevista diária, que os norte-americanos tinham chegado ao aeroporto? "Besteira!", gritou ele. "Mentira! Vejam por si mesmos". E foi o que fizemos.
E, infelizmente para os porta-vozes do comando anglo-americano em Doha e para o funcionário do governo norte-americano mencionado pela BBC, o ministro iraquiano estava certo, e eles, errados. Mas não por muito tempo. Apenas duas horas mais tarde eu deixei a tranquilidade do saguão de embarque do aeroporto, com o slogan "abaixo abaixo os Estados Unidos" pintado de maneira crua nas paredes, e logo os soldados norte-americanos haviam chegado às pistas de pouso, disparando por sobre os terminais, e os aviões de combate da coalizão bombardeavam as aldeias próximas.
Mas um clima de descontração fraudulenta ainda toma conta de Bagdá. Não parecia, quando voltei do aeroporto, haver nenhuma tentativa de bloquear a principal rodovia que conduz à cidade. Salvo alguns poucos soldados nas ruas e um carro-patrulha da polícia, seria possível pensar que é uma noite quase quente de feriado. Durante toda a quinta-feira, me fiz a mesma pergunta -onde estava o suposto ataque norte-americano contra Bagdá, aparentemente tão iminente? Onde estavam as multidões em pânico? E as filas para obter comida? Onde estavam as ruas vazias? E o que exatamente estariam fazendo os norte-americanos? Estavam cercando a cidade, insistiam todos os serviços estrangeiros de rádio e televisão. Mas viajantes continuavam a chegar de Amã, as autoridades municipais tinham devolvido ao serviço a maior parte de seus ônibus chineses de dois andares, e a companhia ferroviária alegava que seus trens continuavam partindo para o norte.
Então, pouco antes do meio-dia da quinta-feira, um som baixo zumbiu e se insinuou na consciência de todas as pessoas nas ruas centrais de Bagdá, um som longo, monótono, ligeiramente oscilante, mistura de um cortador de grama ouvido ao longe e um gato ronronando. E quando olhei na direção em que os braços dos consumidores e policiais apontavam na rua Jumhurriyah, enfim percebi uma máquina semelhante a uma mosca voando devagar pelos céus cinzentos e quentes.
Os norte-americanos haviam enviado a Bagdá seu primeiro drone, o primeiro avião de reconhecimento não tripulado visto até agora nos céus da capital nesta guerra, voando tão devagar que, ao contrário dos jatos supersônicos que cortam os céus como águias em suas incursões de bombardeio à cidade, era fácil acompanhá-lo a olho nu. O aparelho zumbiu rumo ao oeste, na direção do maior e mais bombardeado dos palácios presidenciais, e depois oscilou para o sul. Parecia uma criatura tão frágil, uma presença tão pequena no céu preto e sombrio que era quase possível esquecer o olho onisciente que ele carrega e as imagens em tempo real que estava transmitindo aos americanos no perímetro da cidade, bem como as escolhas que os estava ajudando a fazer quanto a que subúrbios bombardear.
Surgiram novas e incriminadoras provas do uso de munição de fragmentação ("cluster bombs"), dessa vez em Bagdá mesma, e não nas aldeias vizinhas. De Furad, no distrito de Doura, e Hayh al Ama e outras áreas no oeste de Bagdá, civis estavam chegando a enfermarias de emergência com os usuais ferimentos terríveis cortes profundos múltiplos e severos, produzidos pelos estilhaços causados por bombas que explodem no ar. O número de mortos em Furad apenas, diz-se, teria superado os 80. Um hospital central, sozinho, recebeu 39 feridos, quatro dos quais morreram nas salas de operações. Um jovem correu para salvar a vida quando viu os estojos brancos caindo do céu; algumas das demais pessoas que estavam na rua caíram. Outra vítima era um motorista que viu cachos de pequenas esferas explosivas -cada uma das quais carregada de projéteis metálicos em formato de estrela- caindo "como pequenas pedras" do céu. Os pés dele estavam cobertos de sangue, e podiam-se ver os familiares fragmentos de metal em seu peito.
Nos restaurantes da cidade, mudou a freguesia do almoço.
Quinta-feira, eu fui ao Furud, um restaurante que entrega refeições, para comprar minha dose diária de "sish-taouk", tomates e feijão verde. O lugar estava lotado de famílias xiitas, as mulheres usando chadores negros, os homens em sua maioria barbados, mastigando "mezzes" gigantescos de humus e tabule, bem como carne de carneiro e arroz. A televisão exibia um canal iraniano, com um musical em língua persa -a TV iraniana tem dois canais que transmitem em árabe e podem ser captados sem parabólica.
Os cafés estavam lotados de soldados das divisões da Guarda Republicana que defendem Bagdá, homens que podiam dirigir por apenas 15 minutos, das linhas de frente, e comer num restaurante na pausa entre os combates, com seus canhões antiaéreos e veículos militares estacionados diante dos cafés. Assim, onde estão os milhares de soldados da Guarda que os norte-americanos não conseguiram encontrar no deserto? Bem, estão aqui, em Bagdá, defendendo sua capital. Por que, imaginei, os norte-americanos consideram tal fato tão surpreendente? Mas continua a haver aquela recusa iludida e cheia de remorsos, entre as pessoas comuns, quanto a aceitar as profundas mudanças -militares e, portanto, políticas- que estão sendo preparadas para Bagdá. Em Mansour, os lojistas dizem que as histórias sobre a aproximação dos norte-americanos -evidente, dado rugido dos canhões no limite da cidade- são "mentiras estrangeiras", e isso vindo de um vendedor de pistaches que não está sob vigilância de nenhum segurança do regime. Talvez, ponderei, os cidadãos de Bagdá tenham passado por tantas guerras nos últimos 23 anos que os grandes Exércitos e Forças Aéreas que bombardeiam o país simplesmente não causem mais o "choque" e "pavor" que os Estados Unidos esperam.
Percebi, por exemplo, perto da ponte de Rafidiyeh, em meio ao tráfego, um homem de meia-idade encarando o grande monumento à "vitória" de Saddam na guerra contra o Irã, entre 1980 e 1988. Há este monumento à vitória militar, em Bagdá, um monumento aos "mártires" da vitória -talvez meio milhão deles- e um monumento ao soldado desconhecido da mesma guerra.
Os iraquianos que foram feitos prisioneiros pediram um monumento ao seu sofrimento -houve 60 mil deles em oito anos-, mas o pedido foi recusado.
A idéia era enfatizar a humilhação da rendição? Como lição aos jovens soldados iraquianos que estão defendendo sua cidade hoje, para o jovem no hospital Yarmouk, seu amigo e os soldados que devoram o almoço antes de voltar ao front? Apenas 24 horas atrás, o chefe de Estado-Maior da Divisão Bagdá da Guarda Republicana -a mesma divisão que os norte-americanos estavam supostamente incinerando- anunciou que a unidade sofrera apenas 17 mortos e 35 feridos. Em que mundo estamos vivendo? Os norte-americanos realmente seriam detidos no aeroporto? Em 1941, uma patrulha alemã capturou a última parada na linha de bonde de a oeste de Moscou e recolheu os bilhetes jogados fora pelos passageiros como lembrança -o avanço parou ali. Mas poucos aqui acreditam que seja possível impedir os norte-americanos de capturar Bagdá, se realmente o desejarem. Afinal, Napoleão capturou Moscou.
E o que queria dizer o bizarro comunicado norte-americano de que unidades das forças especiais penetrariam certas áreas de Bagdá para descobrir se as forças norte-americanas seriam bem recebidas e que, se a resposta da população fosse amistosa, os norte-americanos adiantariam seu avanço? Parecia uma pesquisa de opinião pública para decidir o destino de Bagdá. Incapaz de comprar uma milícia local para combater por eles, os norte-americanos pareciam estar dizendo que Bagdá seria cercada e sua energia cortada o que acabaria com a comida fresca- se os moradores não executassem o ritual de "libertação" definido por Washington.
Creio que a questão seja a mesma do passado. Os russos conseguiram defender Stalingrado porque amavam a Rússia tanto quanto temiam Stálin. Essa equação de ditadura e patriotismo se aplica aos iraquianos? Os senhores Bush e Blair decerto esperam que não.


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