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BAGDÁ SOB ATAQUE
Frequentadores de café não querem comentar presença de invasores na periferia
Moradores tentam esquecer guerra
PATRICE CLAUDE
DO "LE MONDE", EM BAGDÁ
Esquecer a guerra, os mortos, os
americanos que já acampam na
pista do aeroporto internacional,
a menos de 20 quilômetros do
centro da cidade. Não pensar no
que virá a seguir. Agir como se tudo estivesse normal, mesmo que
seja à luz de velas e lamparinas.
Desde às 19h40 da quinta-feira,
3 de abril, não há mais eletricidade em Bagdá. Nas primeiras horas
quentes do início de verão, diante
das primeiras deflagrações da terceira semana de guerra, a batalha
de Bagdá começou.
Algumas horas antes, estóicos
ou desconhecendo os fatos de
propósito, os habitantes da cidade
se esforçavam para continuar a viver como sempre. Ao meio-dia, o
funcionário médico e militante do
partido governista Baath Jalil
Ibrahim foi até o café Um Kalsum,
na rua Al Rachid, em pleno centro
de Bagdá, num ritual que repete
há 17 anos. O mais importante é
permanecer igual e conservar os
mesmos hábitos. "Essa é a chave
da felicidade na adversidade, para
mim e para os meus", diz ele.
Nem o elegante Jalil nem o comerciante Kadim ou qualquer
outros dos cerca de 50 homens de
40 a 70 anos que ocupam as mesinhas do célebre estabelecimento
têm vontade de falar de política.
"Meus clientes não vêm para cá
para isso", reclama Zaid Abdel
Saada, gerente do café. "Eles vêm
relaxar -não os incomode!"
Entre as velhas mesas de sinuca
americanas do Garage Club, na
rua Sanar, no bairro de Amana,
ou em meio ao zunzunzum do café Al Zahaui, frequentado por jovens burgueses que gostam de
Playstation, de seriados americanos e dos discos de Kadem Al-Sakher, ídolo -no exílio- dos
adolescentes iraquianos, a opinião que se repete é mais ou menos a mesma. "Os americanos
não vão entrar em Bagdá, pode ter
certeza disso. E agora vamos falar
de outra coisa", diz o estudante de
direito Asma, irritado.
Os habitantes de Bagdá, ou pelo
menos alguns deles, se acostumam com tudo. Os engarrafamentos crescem a cada dia que
passa, à medida que os bombardeios e disparos de artilharia aumentam. Cada vez mais lojas e feiras abrem para atender à freguesia, ao mesmo tempo em que as
notícias do front se tornam cada
vez piores. "Essa guerra é realmente diferente de qualquer coisa
que já vimos", observa Jamal
Mahmud, um velho frequentador
do café Um Kalsum que já sentiu
na pele duas outras guerras. "Os
aviões nos bombardeiam, mas
não há alerta, provavelmente nem
há mais radares. E até mesmo
nossas baterias antiaéreas parecem ter ficado mudas, como se
não tivéssemos mais nada com o
que nos defender."
O que fazer, então, senão entregar seu destino a Alá e aguardar o
desenrolar dos acontecimentos?
Desde que o café Um Kalsum foi
aberto, há 51 anos, o ambiente vive envolto no som da voz da grande diva egípcia que lhe dá o nome.
Jamal era pequeno, mas ainda se
lembra do grande concerto da
cantora, em 1946. "Foi logo aqui
ao lado, no teatro Al Midane, e todos nós ficamos em êxtase." O
teatro não existe mais. Em seu lugar foi construído um centro de
telecomunicações ultramoderno.
Bombardeado há três dias, foi reduzido a uma pilha de escombros.
Não há mais telefone em Bagdá. A
explosão foi tão forte que espatifou as janelas do café Al Karaguli,
também na rua Al Rachid.
"Foi uma pena", lamenta Jalil
Ibrahim. "Era lá que íamos para
jogar xadrez com os amigos
quando o Kalsum estava lotado."
Milagrosamente, o Kalsum ainda
estava repleto de frequentadores.
Todas as mesas estavam ocupadas, inclusive as do anexo, aberto
há apenas seis semanas. Nas mesinhas recobertas de plástico, os
homens jogavam gamão ou dominó, tomando chá preto e falando alto. Cercadas de espectadores
silenciosos, as mesas mais tranquilas são as dos jogadores de xadrez. Jalil se recorda, emocionado, da visita do grande campeão
russo Karpov, há apenas três
anos. Uma eternidade.
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