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São Paulo, sábado, 05 de abril de 2003

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BAGDÁ SOB ATAQUE

Frequentadores de café não querem comentar presença de invasores na periferia

Moradores tentam esquecer guerra

PATRICE CLAUDE
DO "LE MONDE", EM BAGDÁ

Esquecer a guerra, os mortos, os americanos que já acampam na pista do aeroporto internacional, a menos de 20 quilômetros do centro da cidade. Não pensar no que virá a seguir. Agir como se tudo estivesse normal, mesmo que seja à luz de velas e lamparinas.
Desde às 19h40 da quinta-feira, 3 de abril, não há mais eletricidade em Bagdá. Nas primeiras horas quentes do início de verão, diante das primeiras deflagrações da terceira semana de guerra, a batalha de Bagdá começou.
Algumas horas antes, estóicos ou desconhecendo os fatos de propósito, os habitantes da cidade se esforçavam para continuar a viver como sempre. Ao meio-dia, o funcionário médico e militante do partido governista Baath Jalil Ibrahim foi até o café Um Kalsum, na rua Al Rachid, em pleno centro de Bagdá, num ritual que repete há 17 anos. O mais importante é permanecer igual e conservar os mesmos hábitos. "Essa é a chave da felicidade na adversidade, para mim e para os meus", diz ele.
Nem o elegante Jalil nem o comerciante Kadim ou qualquer outros dos cerca de 50 homens de 40 a 70 anos que ocupam as mesinhas do célebre estabelecimento têm vontade de falar de política. "Meus clientes não vêm para cá para isso", reclama Zaid Abdel Saada, gerente do café. "Eles vêm relaxar -não os incomode!"
Entre as velhas mesas de sinuca americanas do Garage Club, na rua Sanar, no bairro de Amana, ou em meio ao zunzunzum do café Al Zahaui, frequentado por jovens burgueses que gostam de Playstation, de seriados americanos e dos discos de Kadem Al-Sakher, ídolo -no exílio- dos adolescentes iraquianos, a opinião que se repete é mais ou menos a mesma. "Os americanos não vão entrar em Bagdá, pode ter certeza disso. E agora vamos falar de outra coisa", diz o estudante de direito Asma, irritado.
Os habitantes de Bagdá, ou pelo menos alguns deles, se acostumam com tudo. Os engarrafamentos crescem a cada dia que passa, à medida que os bombardeios e disparos de artilharia aumentam. Cada vez mais lojas e feiras abrem para atender à freguesia, ao mesmo tempo em que as notícias do front se tornam cada vez piores. "Essa guerra é realmente diferente de qualquer coisa que já vimos", observa Jamal Mahmud, um velho frequentador do café Um Kalsum que já sentiu na pele duas outras guerras. "Os aviões nos bombardeiam, mas não há alerta, provavelmente nem há mais radares. E até mesmo nossas baterias antiaéreas parecem ter ficado mudas, como se não tivéssemos mais nada com o que nos defender."
O que fazer, então, senão entregar seu destino a Alá e aguardar o desenrolar dos acontecimentos? Desde que o café Um Kalsum foi aberto, há 51 anos, o ambiente vive envolto no som da voz da grande diva egípcia que lhe dá o nome. Jamal era pequeno, mas ainda se lembra do grande concerto da cantora, em 1946. "Foi logo aqui ao lado, no teatro Al Midane, e todos nós ficamos em êxtase." O teatro não existe mais. Em seu lugar foi construído um centro de telecomunicações ultramoderno. Bombardeado há três dias, foi reduzido a uma pilha de escombros. Não há mais telefone em Bagdá. A explosão foi tão forte que espatifou as janelas do café Al Karaguli, também na rua Al Rachid.
"Foi uma pena", lamenta Jalil Ibrahim. "Era lá que íamos para jogar xadrez com os amigos quando o Kalsum estava lotado." Milagrosamente, o Kalsum ainda estava repleto de frequentadores. Todas as mesas estavam ocupadas, inclusive as do anexo, aberto há apenas seis semanas. Nas mesinhas recobertas de plástico, os homens jogavam gamão ou dominó, tomando chá preto e falando alto. Cercadas de espectadores silenciosos, as mesas mais tranquilas são as dos jogadores de xadrez. Jalil se recorda, emocionado, da visita do grande campeão russo Karpov, há apenas três anos. Uma eternidade.


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