São Paulo, terça-feira, 05 de setembro de 2006

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Africanos bebem água do mar para sobreviver

DA REPORTAGEM LOCAL

O espanhol Juan Antonio Corujo, 41, é voluntário há 27 anos da Cruz Vermelha nas Ilhas Canárias. Começou adolescente na instituição. Há dez ele dirige as equipes responsáveis pela acolhida imediata aos imigrantes que chegam de barco ao arquipélago. "Estou vivendo a experiência mais intensa nestes 27 anos, com tantos naufrágios. Fico ligado 24 horas", diz.
Para ele, a situação dos imigrantes piorou porque muitos dos imigrantes nunca navegaram, ficam à deriva e precisam beber até água de mar para sobreviver à travessia entre o Senegal e as ilhas. Leia os principais trechos da entrevista que ele deu à Folha, por telefone, de Las Palmas. (RJL)
 
A TRAVESSIA
Muitos ficam sem combustível. São marinheiros de primeira viagem. Compram o barco de algum pescador senegalês, colocam motores e se aventuram sem ter idéia do que é o mar. Já resgatamos vários que estavam havia 18 dias à deriva. Sobrevivem bebendo água do mar, perdem muitos quilos.
Os barcos têm capacidade para até 150 pessoas, superlotados, claro. Alguns têm 30 metros de largura, são construídos para pesca em alto-mar.

PERFIL
A maioria deles tem entre 20 e 28 anos, são homens fortes e muito saudáveis. Muitos não são analfabetos, pelo contrário, têm ensino médio ou até são universitários. Só que têm pouca expectativa de trabalho em seus países, levam uma vida muito precária e sabem que, se continuarem em sua terra, podem não superar os 50 anos de idade, que é a expectativa de vida no Mali ou no Senegal.

MENORES DE IDADE
Há muitos menores desacompanhados, que são estimulados pelas famílias a imigrar e tentar uma vida melhor. Assim que conseguirem um emprego, podem ajudar a família na África, mandando dinheiro.
A legislação espanhola é protetora com os menores, eles têm os mesmos direitos que um cidadão espanhol, não podem ser repatriados. Ficam em centros de menores tutelados pelo governo das Canárias ou de outras regiões da Espanha.

A CHEGADA
Meu trabalho é oferecer a primeira ajuda no porto ou na praia, assim que chegam. Dar roupa seca, dar água.
Os adultos vão direto para a delegacia, passam em torno de três dias para identificação, abertura de processo. Podem ficar até 40 dias em um centro de atenção do governo canário.
Quem tem familiares, amigos no país, consegue regularizar a situação, de acordo com a lei de estrangeiros espanhola. O governo paga a viagem aérea até o local onde está a família, seja em Valência ou Madri.
Mas a maioria é repatriada. O governo coloca em um avião e manda para o país de origem. E muitos só pensam na próxima travessia rumo à Europa.

LEI ESPANHOLA
A lei espanhola não é permissiva, não é responsável pela vinda. Uma lei mais dura não vai evitar que eles continuem a tentar uma vida melhor.
Não queremos soluções fáceis, como um muro ou uma redoma. Não é humano mandá-los de volta, não deixá-los desembarcar. Seria condená-los à morte. A União Européia e a comunidade internacional têm que dar outro tipo de resposta. As Canárias são a porta de entrada para a União Européia. Eles continuarão a vir.

VIDA NA ÁFRICA
A vida no continente africano é a grande responsável pelo êxodo. A curto prazo, temos que dar atenção humanitária. Mas, a médio e longo prazos, os países africanos têm que se desenvolver.
Os europeus já precisaram imigrar para as Américas, sabemos do que falamos. Enquanto houver pobreza em massa, isso vai continuar acontecendo.
Temos que repensar a cooperação internacional e os investimentos na África. Não dá para resolver com esmola.

TURISTAS RESGATAM
Vi várias vezes turistas e locais que tomavam sol na praia correrem em direção aos barcos apinhados de africanos. É emocionante. As pessoas levam suas toalhas e seus lanches para dar aos imigrantes.
Até agora não houve nenhum ataque xenófobo, mas as pessoas andam assustadas com as quantidades que estão chegando; sabemos que as Canárias não podem comportar milhões de africanos pobres.
Mas posso falar que nossa relação é boa. Sempre vimos negros, temos grande influência africana nas ilhas, não é algo alheio como em outras partes da Europa. O povo canário viveu muita fome nas três décadas seguintes à Guerra Civil Espanhola. Imigramos para as Américas, então não é difícil colocar-se na pele deles.
(RJL)


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