São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2004

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MISSÃO NO CARIBE

"Para estar lá, um ser humano precisa de todo o preparo psicológico", diz soldado da força de paz da ONU

Miséria do Haiti choca militares brasileiros

Jefferson Bernardes - 1.dez.2004/Folha Imagem
O major Estevam de Barros, que participou da força de paz da ONU, conversa com o filho Eduardo em sua casa, em São Leopoldo


LÉO GERCHMANN
DA AGÊNCIA FOLHA, EM SÃO LEOPOLDO

""Nunca vou esquecer daquela gente tomando banho no esgoto a céu aberto. A gente não sabe o que é talvez o último estágio da miséria. Só vendo. É um retrato que guardo para o resto da vida. Foi a primeira coisa que vi no Haiti."
O relato, feito pelo sargento do Exército Marcondes Ramos, 31, é um exemplo do que os militares brasileiros presenciam no Haiti.
""Como manter o sono tranqüilo? Para nós, brasileiros, com toda a pobreza que temos, é inadmissível um cadáver ficar uma semana exposto à multidão que passa indiferente. Lá, eu vi isso. Para estar lá, um ser humano precisa de todo o preparo psicológico. Ninguém se preocupa com o outro", disse o colega de Ramos, o sargento Arquimedes Dal Castel, 31.
Os dois fazem parte do grupo de 75 militares do 19º Batalhão de Infantaria Motorizado do Exército que retornou a São Leopoldo (a 34 km de Porto Alegre), no último dia 27, após meio ano integrando a missão de paz internacional da ONU (Organização das Nações Unidas) no Haiti.
Cerca de 1.200 militares brasileiros integram a missão que tenta estabilizar o país, em crise desde a queda do presidente Jean-Bertrand Aristide, em fevereiro.
Os relatos feitos à Folha mostram que as imagens vão ficar por muito tempo com os brasileiros que foram a Porto Príncipe. O gaúcho Dal Castel, por exemplo, disse ter ficado tão chocado com o que viu que não contou para sua mulher, Andréa, 25. Só agora começa a falar, mas ""a conta-gotas". ""Não quis deixá-la mais preocupada ainda. Omiti coisas. Agora, começo a contar tudo."
""A gente tem uma preparação psicológica muito forte. Mas chama a atenção a indiferença com a miséria. Não há Estado e não há interesse das pessoas pelo semelhante. É cada um por si." O militar, pai de Henrique, 2, conclui: ""Era inevitável. Eu me lembrava do meu filho quando via aquelas crianças carregando tinas de água na cabeça".
Já o sargento Ramos, pernambucano, casado com Claudiane, 22, afirmou não ter omitido informações. ""Quando conversávamos, eu a tranqüilizava, contando que não corríamos altos riscos. O problema era sempre entre eles [haitianos]."
Mesmo a tranqüilizando, ele não escondia a realidade. ""Vi várias vezes corpos estendidos na via pública durante dias. Mas ela sabe que nossa missão é importante. Eles [os haitianos] nos viam como salvadores. Havia gente que vinha ao nosso encontro pedir ajuda como se pudéssemos resolver todos seus problemas. Eles não nos viam como inimigos."
Dos militares ouvidos pela Folha, um cabo, que preferiu não revelar o nome, admitiu que era impossível evitar momentos de depressão, por mais preparado que estivesse psicologicamente. Para ele, o que o Haiti precisa vai além da ajuda humanitária. Na opinião do cabo, o país precisa passar por mudanças até culturais para, depois, melhorar no aspecto socioeconômico.
Fatos isolados são citados como lembranças presentes. Outro cabo, Leandro Pereira de Azevedo, 31, confessa sem constrangimento ter chorado quando, certo dia, sentado no jipe da ONU em uma rua de Porto Príncipe, uma criança segurou sua mão pedindo ajuda. A imagem de sua filha de cinco anos lhe veio à cabeça na hora. A saudade e o pesar resultaram em tristeza e choro.
O major Erasmo Estevam de Barros, 42, natural do Rio de Janeiro, que faz parte de mesmo batalhão de São Leopoldo, disse que os participantes da missão desembarcaram no Haiti sem saber o que encontrariam.
""A miséria e a falta da família deixaram o pessoal meio banzo [melancólico]. Apesar da seleção de pessoal que fizemos antes da partida, é só lá que a gente fica sabendo como as coisas são. Ninguém imagina o que é lá", disse.
""Você caminha nas ruas daqui e vê ruas limpas. Lá, é lixo por tudo. Há falta de amor pelo país, de amor próprio. Porto Príncipe parece uma cidade abandonada. Há pouco comércio de loja. É o mesmo que o comércio fechar no Brasil e ficarem só os camelôs, só que camelôs mal vestidos."
Barros disse porém que o haitiano respeita muito o soldado brasileiro. E dá a razão: ""Eles vêem pessoas de raças diferentes trabalhando juntas, negros em posição de mando, e gostam disso. Nossa miscigenação joga a favor".
Até o calor do país caribenho passa a ser uma dificuldade. ""A maioria do pessoal do Sul [os comandados de Barros são de São Leopoldo, cidade gaúcha de forte descendência alemã], branca, sofria muito com o sol."
""É importante relatar também que todos aprendemos muito em termos de convivência humana. Não é fácil enfrentar toda aquela situação longe da família. Por isso, o que mais nos preocupava era sempre tranqüilizar nossas famílias. Eu falava todos os dias com a minha", afirma.
""Às vezes, nesses momentos, eu ficava sabendo de coisas que ocorriam onde eu estava. Eles, longe, sabiam antes", sorri Barros, que é casado com a tenente e dentista Márcia e pai de Eduardo, 13, e Thaís, 15.

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