São Paulo, domingo, 06 de fevereiro de 2005

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ESPANHA

Críticas do papa ao governo desencadearam crise

Conflito entre igreja e Estado pode acabar em cisão histórica

Felix Ordoñez/Reuters
Pais levantam filhos durante missa na cidade de Burgos, na Espanha, para serem abençoados


MARI CARMEN NOGUERA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Num país fortemente marcado pela interseção entre catolicismo e poder, a escalada do confronto entre o governo socialista da Espanha e a Igreja Católica vem ganhando contornos de rompimento histórico. E o processo promete ser "longo", como notou um dos líderes socialistas.
A temperatura do conflito subiu drasticamente no dia 25 de janeiro, quando o papa João Paulo 2º criticou, diante de 178 diplomatas, a situação por que passa a religião na Espanha devido às políticas sociais adotadas pelo premiê José Luis Rodríguez Zapatero.
O pontífice acusou o governo espanhol de pôr em risco a instituição da família com medidas de apoio, por exemplo, ao casamento homossexual.
Além disso, segundo João Paulo 2º, "na Espanha se difunde uma mentalidade baseada no laicismo a ponto de promover um desprezo à religião". Ele também criticou a reforma de Zapatero na lei da educação, que eliminou o ensino religioso da grade curricular.
As declarações surpreenderam o governo, que, como reação, convocou o embaixador do papa na Espanha. O governo considerou injusta a fala do pontífice.
Carlos García de Andoin, coordenador dos Cristãos Socialistas do PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol, no poder), disse que as declarações do papa não foram determinadas por uma suposta mudança da atitude do governo em relação à igreja.
"O que existe hoje é um conflito entre velhos e novos valores. Os velhos estão representados pela igreja, e os novos, pelo PSOE ", afirmou. "Vai ser um conflito longo, que pode ser mais suave na forma, mas não na essência."
Ele disse não entender por que a igreja critica tanto o PSOE agora e poupou o partido anterior no poder (o Partido Popular, de centro-direita), em cujo governo o número de jovens católicos caiu e o número de abortos aumentou.
José Manuel Vidal, especialista em religião do jornal espanhol "El Mundo" e diretor do site www.religiondigital.com, deu uma explicação: "[O ex-premiê] José María Aznar deu um presente à igreja, pois fez da religião uma matéria curricular nas escolas".
Mesmo assim, Álvaro Cuesta, presidente da Comissão de Justiça do Congresso e dirigente do PSOE, disse que o governo não está em conflito com a igreja, mas apenas "muito convencido" de que a sua função é cumprir o artigo 16 da Constituição, que estabelece a laicidade do Estado e o princípio de liberdade religiosa.
A verdade, diz ele, é que "alguns membros minoritários da igreja espanhola e pessoas próximas ao papa, entre elas seu porta-voz, Joaquín Navarro-Valls, querem mostrar que há conflito, devido à sua vinculação ao Opus Dei e aos Legionários de Cristo [movimentos católicos conservadores]".
O objetivo, afirma ele, é parar as reformas sociais que estavam no programa eleitoral do PSOE. "O governo não vai deixar de legislar por causa de poderes ocultos, pois numa democracia o Poder Legislativo fica no Parlamento."
Vidal declarou à Folha que a crise entre o governo e a igreja se agravou porque os bispos utilizaram em seu proveito a ressonância que tem a voz do papa.
"Recentemente se descobriu que quem escreveu o discurso do papa foi o arcebispo de Toledo, monsenhor Antonio Canhizares Llovera, líder do setor mais conservador da igreja", disse.
Após as declarações do sumo pontífice, e ante a reação do governo, o cardeal Antonio Maria Rouco Varela disse que não existe na Espanha mais opressão à religião do que no resto na Europa. Para Vidal, porém, o cardeal só suavizou o discurso porque precisa do governo para se reeleger, em 7 de março, presidente da Conferência Episcopal na Espanha.
Víctor Cortizo, diretor do Departamento da Juventude da Conferência Episcopal, disse que os meios de comunicação exageraram e que não há conflito, mas disparidade de opiniões. O que o papa falou, segundo ele, foi mal interpretado, ele "só fez uma reflexão, não era ataque".

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