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ARTIGO
Guerra, direito e a política da lei
CLAUDIA ANTUNES
EDITORA DE MUNDO
A "guerra ao terror" americana, que a Colômbia tenta utilizar para legitimar seu ataque ao
Equador, se ampara em duas
premissas. A primeira é o conceito de "ataque preventivo", o
suposto direito de reagir quando se considera que há intenção
de agressão. A segunda é a política de "jamais negociar ou ceder" a grupos terroristas.
Essas premissas acabam, por
vias diretas ou transversas, se
chocando com outros conceitos e direitos, entre eles o respeito à soberania dos Estados,
base das relações internacionais desde o Tratado de Westfália firmado entre as potências
européias do século 17.
No primeiro caso, porque a
tradição doutrinária e a Carta
da ONU garantem o direito de
defesa, mas só em caso de
agressão ou agressão iminente
-sendo esta última tão difícil
de provar que não faltam livros
discutindo exemplos históricos
que a ela se aplicariam.
No segundo caso, porque os
grupos hoje classificados por
EUA e União Européia como
terroristas, que não são novidade histórica e também são chamados de guerrilhas, organizações paraestatais ou paramilitares, travam as ditas "guerras
assimétricas", em que a desvantagem em recursos bélicos é
compensada pela mistura com
a população civil e o desconhecimento das fronteiras.
Guerra assimétrica
Não é à toa que esses grupos
ganham mais força quando têm
apoio popular (caso do Hamas
ou do Hizbollah) ou quando
atuam em regiões com pouca
presença do Estado, como a selva colombiana (caso das Farc)
ou a fronteira entre o Paquistão
e o Afeganistão (Taleban).
Combatê-los até a derrota implica violação de fronteiras e,
geralmente, muitas vítimas civis, os tais "danos colaterais".
É aí que entra na discussão
outra gama de normas, relativa
aos direitos humanos e à proteção de civis durante conflitos.
Há tempos a soberania estatal deixou de ser vista como absoluta. A própria Carta da ONU
e tratados e convenções internacionais afirmam que é dever
dos Estados proteger suas populações de perseguições por
razões religiosas, políticas ou
étnicas. Recentemente, com a
introdução pelas potências ocidentais do tema das "intervenções humanitárias", a Assembléia Geral da ONU consagrou
o "dever de proteger" civis de
atos de seus governos ou de organizações paramilitares.
Mas, para atingir esse objetivo de proteção, vale o princípio
de que a força utilizada deve ser
proporcional à ameaça e não
causar, no final, mais danos do
que se pretendeu evitar. Um
cálculo difícil de fazer: o certo é
que se sabe como as guerras,
mesmo as "limitadas", começam, mas não como terminam.
Por fim, para embolar ainda
mais o jogo de conceitos esgrimidos na atual crise continental, há a questão do terrorismo.
Não há consenso, na ONU ou
na academia, sobre quais seriam os grupos terroristas. Se é
aparentemente fácil constatar,
pelo senso comum, o que são
atos terroristas -ataques que
visam não-combatentes-,
mais difícil é aplicar a definição
a organizações, pois a maioria
dos grupos paramilitares tem
programas políticos, embora
nem sempre viáveis.
Discutir se esses programas
são legítimos -como no caso
de ocupação estrangeira- é um
debate que não tem fim, pois,
como se sabe, o terrorista de
um lado é, para o outro, um
"combatente da liberdade". Por
isso, optar pela classificação
oficial de "grupo terrorista", como Uribe fez com as Farc, não é
um gesto conceitual e sim político, que indica posição de não-negociação.
Terror e democracia
Existe a idéia de que o adjetivo "terrorista" se aplicaria a
grupos que combatem governos democráticos. Mas essa tese é frágil. Primeiro porque terrorismo é terrorismo em qualquer circunstância. Segundo,
porque há governos legítimos
que praticam o equivalente a
atos terroristas, nesse caso violando o direito que se aplica à
conduta na guerra -com ataques indiscriminados a civis e
maus-tratos de prisioneiros.
Para as organizações internacionais de direitos humanos,
por exemplo, as Convenções de
Genebra se aplicam tanto aos
Estados quanto a grupos paraestatais. Nos dois casos, os
acusados costumam se amparar numa suposta ausência de
intencionalidade -mas como
julgar intenções?- ou no direito de combate à opressão -mas
ele precede o dever de poupar
os não-combatentes?
No fim, o que determina a
precedência de um ou outro direito é a equação do poder político. Na comoção pós-11 de Setembro, os EUA obtiveram na
ONU a legitimação do ataque
ao Afeganistão, até porque as
outras potências do Conselho
de Segurança estavam interessadas em combater seus próprios "terroristas".
Isso não significa que o direito não valha nada. Ele é a garantia última dos mais fracos. Teve
razão o presidente do Equador
ao perguntar, retoricamente,
como a Colômbia reagiria se a
situação fosse inversa. Assim
como, por outros motivos, a
Colômbia tem razão ao afirmar
que o relacionamento mais do
que "humanitário" entre Chávez e as Farc constitui ingerência indevida.
Mas, nas Américas ou no
mundo, o que vale é o dito antigo de que a guerra é a continuação da política, geralmente pela
aposta, de um ou dos dois lados,
de que o recurso às armas pode
estabelecer, pela força, a primazia dos seus argumentos.
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