São Paulo, domingo, 6 de abril de 1997. |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice ARTIGO Che revela face do ``parceiro'' Kabila
JORGE CASTAÑEDA
Os rebeldes logo capturaram Stanleyville, a principal cidade do leste do país -a mesma que, há duas semanas, foi conquistada pelas tropas revoltosas de Kabila-, embora pouco depois tenham sido expulsos por pára-quedistas belgas e mercenários sul-africanos transportados ao país de avião pelos Estados Unidos. No final de 1964, a primeira revolta pós-colonial da África negra havia terminado. Enquanto isso, Ernesto Che Guevara, o heróico comandante e companheiro de Fidel Castro desde as primeiras horas da epopéia cubana no México, estava à procura de diferentes maneiras de dar continuidade a seu caminho revolucionário fora de Cuba. No início de 1965, percorreu uma dúzia de capitais africanas, périplo durante o qual conheceu, em Gana e no Cairo, os principais dirigentes da rebelião congolesa. Simpatizou com Kabila, no qual depositou tanta confiança que decidiu encabeçar ele mesmo uma expedição de uma centena de combatentes cubanos enviados ao coração das trevas para dar apoio aos rebeldes congoleses. Em meados de abril de 1965, Che desaparece de Cuba e, com todo sigilo, se desloca até Dar Assalaam, na Tanzânia, de onde partirá para a vila de Kigoma, às margens do lago Tanganika. A seguir, atravessa o lago para instalar-se em sua margem ocidental, onde permanecerá por mais de seis meses desesperadores, torturado pela disenteria e pela asma, angustiado com o descontentamento de seus soldados, as rivalidades entre as grandes potências e os insólitos conflitos intertribais da África profunda. Mas o ``fracasso'' de Che no Congo (como ele mesmo o descreveu) foi motivado por uma razão adicional, possivelmente decisiva: a indecisão e as tramóias de seu principal interlocutor e ``parceiro'' congolês: Laurent Kabila. Desde as primeiras páginas de seu diário do Congo, ainda inédito enquanto tal, Che Guevara se queixa de vários defeitos de caráter e políticos do dirigente rebelde. Duas coisas em particular o obcecavam. A primeira era a constante ausência de Kabila na frente de luta: em apenas uma ocasião ao longo daqueles intermináveis meses este apareceu no acampamento rebelde, e, mesmo assim, por apenas cinco dias. Che se queixa repetidamente do infame hábito de todos os líderes congoleses de passar mais tempo no Cairo, em Paris e em Dar Assalaam, redigindo comunicados de guerra, do que na linha de combate. Ele os repreende amargamente por seu eterno perambular pelos hotéis de luxo daquelas capitais, rodeados de mulheres caras e uísque envelhecido.
Guevara não apenas reprova a falta de bravura pessoal de Kabila, mas também sua indecisão política. Kabila nunca permitiu que o próprio Che se deslocasse até a frente -embora Guevara tenha terminado por fazê-lo, mesmo sem autorização-, nem que informasse às autoridades da Tanzânia de sua presença na região. Em outras palavras, nem Kabila assumia o comando, nem tolerava que Che o fizesse. Na opinião de Che, a razão disso era simples: se Che entrasse em combate, chamaria atenção aos líderes locais que se negavam a fazê-lo; se sua presença fosse divulgada, poderia provocar uma internacionalização do conflito, exatamente a situação que ele, Che, desejava, mas que, para Kabila, não constituía perspectiva atraente. Para quem se propõe, hoje, a saber algo sobre Laurent Kabila, as seguintes linhas de ``Passagens da Guerra Revolucionária (o Congo)'', o texto de Che sobre sua estadia naquele país -até hoje fechado nos arquivos cubanos, por razões não explicadas-, podem ser reveladoras: ``Todos os dias, o mesmo refrão matinal: `Kabila não chegou hoje, mas virá sem falta amanhã ou depois de amanhã...' Kabila não havia posto pé nas diferentes frentes desde tempos imemoriais. Kabila veio, ficou cinco dias e se foi, fazendo aumentar os rumores sobre sua pessoa. Minha presença não o agrada, mas ele parece tê-la aceita por enquanto... Até agora, nada me leva a pensar que ele seja o homem certo para esta situação.'' ``Deixa passar os dias sem preocupar-se com nada além das desavenças políticas, e gosta demais da bebida e das mulheres... Se me perguntassem se há alguma figura no Congo que eu acho que tem possibilidade de ser um dirigente nacional, eu não poderia dar uma resposta afirmativa, excetuando Mulele, que não conheço. O único homem que tem autênticas condições de ser líder de massas me parece ser Kabila'', escreve. ``Pelo meu critério, um revolucionário de completa pureza, se não possuir certas qualidades de líder, não pode dirigir uma revolução, mas um homem que tenha condições de ser dirigente nem só por isso poderá levar adiante uma revolução. É preciso ter seriedade revolucionária, uma ideologia que oriente a ação, um espírito de sacrifício que oriente suas metas. Até agora Kabila não demonstrou possuir nada disso. Ele é jovem e é possível que mude, mas me animo a registrar num papel que será lido dentro de muitos anos minhas dúvidas muito grandes de que consiga superar seus defeitos.'' Depois que Mobutu tomou o poder em novembro daquele ano fatídico, o apoio à intervenção cubana na África diminuiu. Os integrantes da Organização da Unidade Africana, juntamente com o próprio Kabila, solicitaram a retirada de Che e de seu contingente cubano; o ex-ministro da Indústria atendeu o pedido, embora a contragosto. Conseguiu romper o cerco montado em torno das margens do lago Tanganika pela CIA, os belgas, os recrutas de Mike (``o Louco'') Hoare e as tropas de Mobutu. Para decepção de Lawrence Devlin e dos mercenários sul-africanos, Che conseguiu burlar a vigilância de suas lanchas no lago e escapar da ratoeira em que se havia convertido seu acampamento. Che Guevara iria morrer apenas dois anos mais tarde, na Bolívia, onde, mais uma vez, defendia uma luta revolucionária contrária aos desejos de seus supostos aliados locais. Mas não se enganou de todo em sua escolha do Congo como cabeça-de-ponte na África, nem de Kabila como associado. O separaram da vitória apenas 30 anos de história e um mundo inteiro de confusões e mistérios africanos. A biografia de Che Guevara, ``A Vida em Vermelho'', de Jorge Casta¤eda, será lançada no Brasil, em maio, pela Companhia das Letras. Jorge Casta¤eda, sociólogo e economista, é professor visitante da Universidade Harvard (EUA) e catedrático da Unam (Universidade Autônoma do México). Tradução de Clara Allain Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
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