São Paulo, domingo, 6 de abril de 1997.

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VONTADE DE MORRER 2
Na China, a falta de vínculo com doenças mentais contesta teoria tradicional sobre morte voluntária
Depressão não basta para explicar suicídio



Continuação da pág. 27 Em alguns países, as cifras oficiais são falhas porque o suicídio é ilegal ou porque carrega um estigma, como acontece nos países católicos, levando os parentes a mentir sobre as causas da morte.
E muito países em desenvolvimento não têm registros das causas de morte de grandes parcelas de sua população. Assim, embora os países industrializados tenham gradativamente aumentado a precisão de suas estimativas, os números isoladamente traçam um quadro global distorcido.
Para contornar esses problemas, Chris Murray e seus colegas da Universidade Harvard e da OMS utilizaram os padrões de morte de um sistema chinês de coleta de dados, que fornece dados confiáveis para uma amostra representativa da população.
Ao número de suicídios registrados, acrescentaram uma porcentagem das mortes acidentais de causa desconhecida. A porcentagem escolhida foi baseada na proporção de mortes acidentais de causa conhecida que são suicídios.
A etapa seguinte consistiu em extrapolar, a partir dessas cifras, para o resto da população chinesa. Os resultados finais foram até um terço superiores às cifras originais divulgadas pelas autoridades chinesas. Jenkins, que até dezembro passado foi a principal responsável pelo setor de saúde mental do Departamento de Saúde britânico, se disse ``muito impressionada com a natureza meticulosa do trabalho... Convenceu-me''.
Causas desconhecidas
Quanto às teorias sobre o suicídio, as novas descobertas desafiam décadas de pesquisas. Desde os anos 50, os estudos feitos nos EUA, Reino Unido e outros países europeus concluíram que até 90% das pessoas que se matam sofrem de doenças psicológicas graves, principalmente depressão clínica grave e desordem afetiva bipolar (antigamente conhecida como doença maníaco-depressiva).
No Reino Unido, cerca de uma em cada seis pessoas que apresentam graves doenças mentais acaba se matando. ``O suicídio racional é tão raro que praticamente inexiste'', diz Jenkins. A principal exceção a essa regra amplamente aceita é que o abuso de drogas e as desordens de personalidade também contribuem para os suicídios entre adolescentes e adultos jovens no Ocidente.
É claro que as teorias ocidentais sobre os fatores que provocam o suicídio precisam incluir outros fatores predisponentes além da depressão, mesmo porque os índices de depressão são relativamente semelhantes em todas as partes do mundo, enquanto os índices de suicídio variam muito de um país industrializado a outro.
Além disso, existem evidências de que determinadas transformações sociais são acompanhadas pelo aumento nos índices de suicídio: por exemplo, índices mais altos de desemprego e a crescente fragilidade do casamento e de outros relacionamentos familiares têm coincidido com um aumento nos índices de suicídio nos jovens europeus, nos últimos 20 anos.
Alguns especialistas em suicídio argumentam que a urbanização também é prejudicial à saúde mental. Já em 1897 o sociólogo francês Emile Durkheim argumentou que a probabilidade de as pessoas cometerem suicídio é maior quando vivem em áreas urbanas pouco integradas, onde os indivíduos se sentem ``alienados'' da sociedade.
Pouco a pouco a idéia de que as cidades são antros de alienação, isolamento e, consequentemente, de suicídio foi crescendo entre trabalhadores na saúde e cientistas sociais, baseada em poucos dados.
Suicídios rurais
Na China, porém, os suicídios contrariam todas as regras. Em primeiro lugar, o vínculo entre doenças mentais e suicídio é muito menos evidente na China. Phillips acredita que é bem possível que menos de 50% dos chineses que cometem suicídio sofram de depressão diagnosticável como tal ou de qualquer outra doença mental.
Phillips especula que, na China, as tensões sociais talvez desempenhem um papel muito maior nos suicídios do que no Ocidente. As mulheres jovens representam uma parcela desproporcionalmente grande dos suicidas na China.
Phillips acredita que determinadas pressões sociais que quase não existem na Europa e nos EUA, como a obrigatoriedade de manter casamentos infelizes, de ocultar indiscrições sexuais, de conviver com sogras pouco amistosas ou os problemas de dinheiro -às vezes provocados por dívidas de jogos de azar, um passatempo muito popular na zona rural chinesa- podem se tornar intoleráveis.
Outros especulam que a política chinesa de controle de natalidade, que limita cada casal a ter um filho, e suas ramificações sociais, também possa agravar essas tensões. Mas a ausência de dados não permite que se tirem conclusões.
A infelicidade na família certamente parece pesar muito nos índices de suicídio de Xangai. Das 8.000 pessoas que telefonaram para o Disque-Saúde Mental da cidade num período de dois anos, a maioria queria falar de problemas com seus amantes e parceiros. Entre os não casados que telefonaram para o serviço, metade pediu ajuda para resolver problemas ligados a casos de amor.
Entre os casados, mais da metade disse estar tendo ``brigas conjugais e problemas de família''. Apesar disso, a visão de Phillips não se enquadra inteiramente na de outros especialistas.
Segundo Andrew Cheng, psiquiatra da Academica Sinica, em Taipé, Taiwan, que estuda o suicídio na ilha, dizer que os casos de depressão são mais raros na Ásia do que no Ocidente ou que as causas fundamentais de suicídio no Ocidente e no Oriente são diferentes é bobagem. E ele apresenta dados para justificar sua posição.
No início dos anos 90, Cheng estudou o suicídio em três grupos étnicos diferentes -duas populações nativas do Taiwan e os chineses da etnia han- no leste de Taiwan. Pelo menos 97% das pessoas que cometeram suicídio durante o período estudado tinham um histórico de doenças mentais, das quais as mais comuns eram depressão e alcoolismo.
Suas descobertas foram publicadas no ``Archives of General Psychiatry'', em 1995. ``Os antecedentes psiquiátricos do suicídio são os mesmos no Ocidente e no Oriente'', diz ele. Para decidir se ele ou Phillips tem razão, será preciso conseguir estimativas mais exatas sobre a extensão da depressão na China, além dos resultados do estudo de Pequim.
Ocidente e Oriente
Outro ponto de divergência entre Ocidente e Oriente é a escala relativa do suicídio na zona rural. Com índices de suicídios rurais três vezes superiores aos urbanos, pelo menos na China, o idílio rural parece não passar de mito. Em outro estudo baseado em Taiwan, Cheng constatou que as mulheres urbanas têm menos tendência a sofrer de depressão do que as rurais e argumentou que a idéia secular de que as cidades são nocivas à saúde mental é enganosa.
Mas, além das tensões sociais e da vida rural, existem outras explicações possíveis para os padrões de suicídio diferentes na China.
É possível que os altos índices nacionais de suicídio reflitam uma aceitação maior do suicídio na sociedade chinesa. O país tem uma história de suicídios honrados, e, segundo algumas interpretações do confucionismo, uma morte honrada é melhor do que uma vida sem honra. Mesmo assim, o budismo, de modo geral, não tolera o suicídio, e há vertentes do pensamento confuciano que tampouco.
Outra possibilidade é que talvez seja fácil demais cometer suicídio na China. Na zona rural, onde os índices são mais altos, o método mais comum de suicídio é o envenenamento com inseticidas, encontrados facilmente.
No Ocidente, os índices de suicídio caíram cada vez que um método testado e de eficácia comprovada deixou de ser facilmente utilizável -por exemplo, quando o gás obtido do carvão, altamente tóxico, deixou de ser usado na Inglaterra, sendo substituído pelo gás do mar do Norte.

Tradução de Clara Allain

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