São Paulo, quinta-feira, 06 de maio de 2004

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Tortura abala ainda mais imagem dos EUA entre árabes

NEIL MacFARQUHAR
DO "NEW YORK TIMES"

Em todo o mundo árabe e fora dele, a tortura de prisioneiros iraquianos por seus guardas americanos prejudicou ainda mais o apoio já escasso com que contava a invasão americana do Iraque e sua promessa de semear no país os valores democráticos e o respeito pelos direitos humanos.
O ultraje provocado pelos abusos mostrados em fotos espalhadas pelas primeiras páginas de jornais e por telas de televisão suscitou comparações emotivas, com pessoas se perguntando em quê a ocupação americana do país se diferencia da maneira como o governo de Saddam Hussein oprimia os iraquianos.
Alguns comentaristas no Oriente Médio criticaram o que qualificaram como um elemento de hipocrisia na reação, já que virtualmente nenhuma voz se ergueu em indignação durante décadas de torturas em prisões no Iraque e outros lugares. Mas a reação mais comum parece ter sido a de as imagens alimentarem uma revolta profunda já existente contra os EUA, por ter prometido que as coisas iriam melhorar.
"Os EUA já tinham muito pouca credibilidade no Oriente Médio. Agora essa credibilidade caiu para quase zero", disse Abdelmonem Said, diretor do Centro Al Ahram de Estudos Políticos e Estratégicos, no Cairo (Egito).
"O que restou da lógica americana para explicar sua presença no Iraque?", ele perguntou. "Se começarmos com a questão das armas de destruição em massa, elas não existem. Depois falou-se em combater o terrorismo, e eles trouxeram o terrorismo consigo. Finalmente há a questão da democracia e do respeito aos direitos humanos: Saddam foi um açougueiro que torturava -agora são os EUA que torturam."
Mesmo os porta-vozes do governo egípcio, normalmente bastante circunspectos nas críticas à administração americana, com a exceção da questão de seu apoio a Israel, disseram que a tortura confirma que Washington estava mentindo quando disse que derrubar Saddam atendia aos interesses da população iraquiana.
"O fato é que o comportamento desses soldados corresponde plenamente à missão para a qual eles vieram ao Iraque", disse em editorial o jornal semi-oficial ""Al Ahram", afirmando que os objetivos reais de Washington eram "invadir esse importante país árabe, destruir sua capacidade econômica e militar, dilacerar seu Estado, atendendo aos interesses de Israel, controlar sua enorme riqueza petrolífera e eliminar qualquer obstáculo à realização desses objetivos, quer venha do Exército, da população ou da resistência armada nacional".
No Iraque, o Conselho de Governo (empossado pelos EUA) exigiu que a administração das prisões passe para o controle iraquiano e que juízes iraquianos participem da apuração dos abusos. "Eles devem permitir que os ministérios aqui tenham livre acesso a essas prisões, e também as organizações de direitos humanos", disse um membro do conselho, Mahmoud Othman.
Alguns comentaristas observaram que criticar exclusivamente os EUA é hipocrisia pura, quando se leva em conta o histórico de tortura nas prisões árabes. Escrevendo no diário "Al Bayan", dos Emirados Árabes Unidos, Ahmad Amorabi disse que os EUA provavelmente imaginaram que sairiam ilesos depois de cometer abusos tão hediondos porque há muito tempo os árabes reagem passivamente a casos de tortura.
"Quem vai fotografar as práticas ainda mais hediondas comuns nas prisões do mundo árabe, onde milhares e milhares de prisioneiros de consciência são torturados há muitos anos, enquanto nós, os milhões de árabes que estamos fora das prisões, fazemos de conta que nada vemos nem ouvimos?", ele escreveu.
A maioria dos analistas acha que as conseqüências das fotos vão não apenas abalar a credibilidade dos EUA, mas também a de grupos e indivíduos locais que defendem os direitos humanos e os sistemas democráticos ocidentais. "Com o tempo as imagens vão perder força, mas será muito difícil para os EUA pregarem democracia, liberdade e respeito pelos direitos humanos", disse Mohamed Kamal, professor de ciência política na Universidade do Cairo e formado nos EUA.
As reações desse tipo não se limitaram ao mundo árabe. De maneira geral, a tortura foi vista como exemplo vívido do caos que envolve todo o empreendimento americano no Iraque.


Tradução de Clara Allain


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