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"Novaya Gazeta" rompe cerco ao jornalismo na Rússia
Periódico que teve 4 jornalistas assassinados sobressai com mescla de experiência e idealismo
Jornal independente é alvo de restrições de anunciantes e sobrevive de aportes de banqueiro, que tem com Gorbatchov 49% das ações
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
Anna Politkovskaya tinha 48
anos em outubro de 2006
quando, ao chegar à sua casa
em Moscou, foi assassinada
com dois tiros no peito, outro
no ombro e uma quarta bala na
cabeça.
Crítica do governo de Vladimir Putin, a jornalista formada
pela Universidade de Moscou
em 1980 era dona de uma dezena de prêmios internacionais
por coberturas como a que
apontou violações dos direitos
humanos por parte do Exército
russo mas também dos rebeldes que buscavam independência na Tchetchênia dos anos 90.
Anastasia Baburova, 25, ainda matriculada na mesma Universidade de Moscou, havia
acabado de se filiar ao grupo esquerdista russo Ação Autônoma ao ser morta por outro atirador, há dois meses.
Os mandantes dos dois assassinatos seguem desconhecidos.
Longe de serem casos isolados, elas são exemplos da violência direcionada a jornalistas
que fez da Rússia o terceiro país
mais perigoso para o trabalho
de imprensa no mundo -o índice é baseado no número de
mortos no exercício da profissão desde 1992-, segundo a organização norte-americana
CPJ (Comitê para a Proteção
de Jornalistas).
Ambas são também representantes do perfil de profissionais da "Novaya Gazeta" (novo
jornal, em russo), uma redação
de cerca de cem pessoas que
combina a experiência de repórteres como Politkovskaya
com certo idealismo de uma
maioria recém-saída ou ainda
frequentando os bancos escolares, caso de Baburova.
A Gazeta, fundada em 1993, é
unanimemente considerada
por analistas a publicação mais
independente e crítica da Rússia sob Putin.
O enorme poder do atual primeiro-ministro e ex-presidente (2000-2008) tende a limitar
a independência dos Poderes
Judiciário e Legislativo, as possibilidades de iniciativas políticas e empresariais autônomas
no país, bem como a liberdade
de opinião e a abrangência dos
direitos civis.
É nesse ambiente que a Gazeta consegue uma circulação
de 270 mil exemplares, que
chegam majoritariamente às
bancas de Moscou -uma parcela menor é distribuída em
outras grandes cidades- às segundas, quartas e sextas.
Cada edição do pequeno jornal tem cerca de 30 páginas, em
que se encontram principalmente notícias da política russa
e investigações sobre grupos de
poder locais -muitos dos quais
terminam por se ligar, direta ou
indiretamente, ao primeiro-ministro.
As reportagens alcançam um
grupo de leitores que está sobretudo em Moscou. "Muitos
são intelectuais, com valores liberais, preocupados em terem
perspectivas diferentes sobre
os fatos, e que não temem criticar as autoridades", como explica a responsável por Europa
e Ásia Central do Comitê para a
Proteção de Jornalistas, Nina
Ognianova.
Andrei Lipsky, editor-adjunto da Gazeta, afirma que seus
leitores "são pessoas instruídas, jovens e de meia-idade,
que preferem um tipo de imprensa que salvaguarde os valores da liberdade e da cidadania, e que acreditam que o Estado deva ser um instrumento
a serviço do cidadão, e não um
valor sagrado".
Mortes
A "Novaya Gazeta" é o jornal
"mais crítico, mais independente" da Rússia, diz Ognianova, mas não é o único. Um diário de negócios e economia, o
"Kommersant" (algo como
"homem de negócios"), é apontado por ela como o que tem a
estrutura mais profissional,
além de ser também independente do governo. Outro exemplo de cobertura crítica é o da
revista semanal "Novoye
Vremya" (novos tempos).
Entre os entraves para o tipo
de jornalismo praticado por esses meios está o que Ognianova
chama de estímulo à violência
contra a liberdade de imprensa
no país. Desde que Putin chegou ao poder, 16 jornalistas foram assassinados na Rússia
-quatro deles, segundo a contagem do CPJ, pertenciam à
"Novaya Gazeta".
"Não podemos dizer que o
governo russo é diretamente
responsável pelas mortes, mas
podemos afirmar que ele criou
um ambiente em que a impunidade grassa", diz a representante do CPJ. Dos 16 assassinatos desde 2000, só houve condenação em um dos casos. Em
13 deles, ninguém foi levado a
julgamento.
"Inimigos de uma imprensa
livre foram, no fim das contas,
fortalecidos e se sentiram à
vontade para continuar a censurar os seus críticos -da pior
forma possível, matando-os",
ela diz.
O editor-adjunto da Gazeta
acusa esses mesmos "inimigos". "De onde vêm as balas?
Do lado daqueles para os quais
é perigosa a verdade a respeito
de sua atividade. A maior parte,
do lado daqueles representantes das estruturas de poder, que
se tornaram objeto de investigações anticorrupção", diz.
Outro entrave à independência é criado pelas dificuldades
econômicas. A ""Novaya Gazeta" não consegue sobreviver só
de publicidade", dizem Ognianova, Lipsky e Alexei Simonov,
presidente da Fundação de Defesa da Glasnost, uma organização que monitora a liberdade
de imprensa no país.
"Na Rússia há uma interferência do governo no mercado
publicitário", afirma Ognianova. "As empresas ligadas ao governo não anunciam em meios
críticos. Há também uma restrição informal -embora não
saibamos exatamente como ela
é lograda pelo governo- que limita o investimento de empresas privadas em publicidade em
jornais como a Gazeta."
A saída encontrada pelo jornal, antes propriedade do grupo de profissionais que o fundou, foi vender 10% de seu controle para o ex-presidente da
União Soviética Mikhail Gorbatchov e 39% para o milionário russo Alexander Lebedev.
Ambos fazem uma oposição
muito mais cautelosa em relação ao governo Putin do que o
jornal em que investem. Sem
anúncios suficientes para se
pagar, Lipsky reconhece que a
sobrevivência da publicação
depende de Lebedev, que fez
fortuna no setor bancário russo
e detém também um terço da
empresa aérea Aeroflot.
"O jornal se sustenta com os
proventos das vendas e das assinaturas e com os investimentos realizados por acionistas do
jornal, como Lebedev", declara
Lipsky.
São essas restrições econômicas e ameaças, fatores que de
forma geral limitam drasticamente o número de publicações críticas na Rússia, que terminam por criar as condições
que alimentam o perfil profissional da Gazeta.
"A espinha dorsal do conteúdo é dada por um conjunto de
10 ou 12 jornalistas, entre 40 e
50 anos, que poderiam encontrar emprego em outros meios,
menos críticos, mas que só têm
os seus anseios profissionais
satisfeitos na "Novaya Gazeta'",
diz Simonov.
"O jornal atrai grandes nomes e profissionais de boa reputação que querem fazer jornalismo investigativo de verdade", reitera Ognianova. "Eles
são parte da equipe. Mas o "Novaya Gazeta" tem também um
grande número de repórteres
bastante jovens, que acabaram
de sair das escolas de jornalismo, idealistas, que querem praticar o tipo de ofício que aprendem na faculdade."
É essa "boa dose de idealismo, de entusiasmo", ela diz,
que explica a persistência em
um trabalho que já matou vários de seus colegas. E eles não
têm medo?
"Nosso trabalho testemunha
não a coragem, mas a impossibilidade de viver e trabalhar segundo outras diretrizes. Quanto a temer alguma coisa, quando se trabalha muito e de maneira interessante, não há tempo para o medo", afirma Lipsky.
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