São Paulo, sábado, 07 de março de 2009

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"Novaya Gazeta" rompe cerco ao jornalismo na Rússia

Periódico que teve 4 jornalistas assassinados sobressai com mescla de experiência e idealismo

Jornal independente é alvo de restrições de anunciantes e sobrevive de aportes de banqueiro, que tem com Gorbatchov 49% das ações

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Anna Politkovskaya tinha 48 anos em outubro de 2006 quando, ao chegar à sua casa em Moscou, foi assassinada com dois tiros no peito, outro no ombro e uma quarta bala na cabeça.
Crítica do governo de Vladimir Putin, a jornalista formada pela Universidade de Moscou em 1980 era dona de uma dezena de prêmios internacionais por coberturas como a que apontou violações dos direitos humanos por parte do Exército russo mas também dos rebeldes que buscavam independência na Tchetchênia dos anos 90.
Anastasia Baburova, 25, ainda matriculada na mesma Universidade de Moscou, havia acabado de se filiar ao grupo esquerdista russo Ação Autônoma ao ser morta por outro atirador, há dois meses.
Os mandantes dos dois assassinatos seguem desconhecidos.
Longe de serem casos isolados, elas são exemplos da violência direcionada a jornalistas que fez da Rússia o terceiro país mais perigoso para o trabalho de imprensa no mundo -o índice é baseado no número de mortos no exercício da profissão desde 1992-, segundo a organização norte-americana CPJ (Comitê para a Proteção de Jornalistas).
Ambas são também representantes do perfil de profissionais da "Novaya Gazeta" (novo jornal, em russo), uma redação de cerca de cem pessoas que combina a experiência de repórteres como Politkovskaya com certo idealismo de uma maioria recém-saída ou ainda frequentando os bancos escolares, caso de Baburova.
A Gazeta, fundada em 1993, é unanimemente considerada por analistas a publicação mais independente e crítica da Rússia sob Putin.
O enorme poder do atual primeiro-ministro e ex-presidente (2000-2008) tende a limitar a independência dos Poderes Judiciário e Legislativo, as possibilidades de iniciativas políticas e empresariais autônomas no país, bem como a liberdade de opinião e a abrangência dos direitos civis.
É nesse ambiente que a Gazeta consegue uma circulação de 270 mil exemplares, que chegam majoritariamente às bancas de Moscou -uma parcela menor é distribuída em outras grandes cidades- às segundas, quartas e sextas.
Cada edição do pequeno jornal tem cerca de 30 páginas, em que se encontram principalmente notícias da política russa e investigações sobre grupos de poder locais -muitos dos quais terminam por se ligar, direta ou indiretamente, ao primeiro-ministro.
As reportagens alcançam um grupo de leitores que está sobretudo em Moscou. "Muitos são intelectuais, com valores liberais, preocupados em terem perspectivas diferentes sobre os fatos, e que não temem criticar as autoridades", como explica a responsável por Europa e Ásia Central do Comitê para a Proteção de Jornalistas, Nina Ognianova.
Andrei Lipsky, editor-adjunto da Gazeta, afirma que seus leitores "são pessoas instruídas, jovens e de meia-idade, que preferem um tipo de imprensa que salvaguarde os valores da liberdade e da cidadania, e que acreditam que o Estado deva ser um instrumento a serviço do cidadão, e não um valor sagrado".

Mortes
A "Novaya Gazeta" é o jornal "mais crítico, mais independente" da Rússia, diz Ognianova, mas não é o único. Um diário de negócios e economia, o "Kommersant" (algo como "homem de negócios"), é apontado por ela como o que tem a estrutura mais profissional, além de ser também independente do governo. Outro exemplo de cobertura crítica é o da revista semanal "Novoye Vremya" (novos tempos).
Entre os entraves para o tipo de jornalismo praticado por esses meios está o que Ognianova chama de estímulo à violência contra a liberdade de imprensa no país. Desde que Putin chegou ao poder, 16 jornalistas foram assassinados na Rússia -quatro deles, segundo a contagem do CPJ, pertenciam à "Novaya Gazeta".
"Não podemos dizer que o governo russo é diretamente responsável pelas mortes, mas podemos afirmar que ele criou um ambiente em que a impunidade grassa", diz a representante do CPJ. Dos 16 assassinatos desde 2000, só houve condenação em um dos casos. Em 13 deles, ninguém foi levado a julgamento.
"Inimigos de uma imprensa livre foram, no fim das contas, fortalecidos e se sentiram à vontade para continuar a censurar os seus críticos -da pior forma possível, matando-os", ela diz.
O editor-adjunto da Gazeta acusa esses mesmos "inimigos". "De onde vêm as balas? Do lado daqueles para os quais é perigosa a verdade a respeito de sua atividade. A maior parte, do lado daqueles representantes das estruturas de poder, que se tornaram objeto de investigações anticorrupção", diz.
Outro entrave à independência é criado pelas dificuldades econômicas. A ""Novaya Gazeta" não consegue sobreviver só de publicidade", dizem Ognianova, Lipsky e Alexei Simonov, presidente da Fundação de Defesa da Glasnost, uma organização que monitora a liberdade de imprensa no país.
"Na Rússia há uma interferência do governo no mercado publicitário", afirma Ognianova. "As empresas ligadas ao governo não anunciam em meios críticos. Há também uma restrição informal -embora não saibamos exatamente como ela é lograda pelo governo- que limita o investimento de empresas privadas em publicidade em jornais como a Gazeta."
A saída encontrada pelo jornal, antes propriedade do grupo de profissionais que o fundou, foi vender 10% de seu controle para o ex-presidente da União Soviética Mikhail Gorbatchov e 39% para o milionário russo Alexander Lebedev.
Ambos fazem uma oposição muito mais cautelosa em relação ao governo Putin do que o jornal em que investem. Sem anúncios suficientes para se pagar, Lipsky reconhece que a sobrevivência da publicação depende de Lebedev, que fez fortuna no setor bancário russo e detém também um terço da empresa aérea Aeroflot.
"O jornal se sustenta com os proventos das vendas e das assinaturas e com os investimentos realizados por acionistas do jornal, como Lebedev", declara Lipsky.
São essas restrições econômicas e ameaças, fatores que de forma geral limitam drasticamente o número de publicações críticas na Rússia, que terminam por criar as condições que alimentam o perfil profissional da Gazeta.
"A espinha dorsal do conteúdo é dada por um conjunto de 10 ou 12 jornalistas, entre 40 e 50 anos, que poderiam encontrar emprego em outros meios, menos críticos, mas que só têm os seus anseios profissionais satisfeitos na "Novaya Gazeta'", diz Simonov.
"O jornal atrai grandes nomes e profissionais de boa reputação que querem fazer jornalismo investigativo de verdade", reitera Ognianova. "Eles são parte da equipe. Mas o "Novaya Gazeta" tem também um grande número de repórteres bastante jovens, que acabaram de sair das escolas de jornalismo, idealistas, que querem praticar o tipo de ofício que aprendem na faculdade."
É essa "boa dose de idealismo, de entusiasmo", ela diz, que explica a persistência em um trabalho que já matou vários de seus colegas. E eles não têm medo?
"Nosso trabalho testemunha não a coragem, mas a impossibilidade de viver e trabalhar segundo outras diretrizes. Quanto a temer alguma coisa, quando se trabalha muito e de maneira interessante, não há tempo para o medo", afirma Lipsky.


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