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São Paulo, sábado, 07 de junho de 2003

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IRAQUE

Derrubada do ex-ditador faz com que cicatrizes do regime sejam reabertas, com sobreviventes relatando os seus pesadelos

Valas abertas expõem repressão de Saddam


"O silêncio era notável. Começaram a atirar. De alguma maneira, não fui atingido. A essa altura, não se davam ao trabalho de atirar em um por um"

"Tive sorte porque meu corpo morreu. Não estava consciente do que acontecia. Não havia água, não havia comida suficiente. Os fracos esperavam"

"[O genro de Saddam Hussein] dizia às pessoas que saíssem de seus carros e atirava nelas; atirou até que seu braço não agüentasse mais o esforço"



SUSAN SACHAS
DO "NEW YORK TIMES", EM HILLA (IRAQUE)

Ele era um bom soldado, de modo que quando ouviu os primeiros estampidos das armas dos carrascos, Fadel al Shaati disse ter instintivamente caído ao chão e se espremido contra a borda da trincheira recém-escavada.
Shaati simplesmente não conseguia entender. Os homens que estavam disparando contra ele eram seus camaradas de armas. Soldados do Exército iraquiano, como ele. Mas o haviam arrastado da cama em suas roupas de dormir, inexplicavelmente, da mesma maneira que a muitos outros, e o forçaram a entrar, amarrado e vendado, em uma fossa, no escuro da noite.
Agora, passados 12 anos, Shaati não consegue se lembrar se as mulheres e crianças que o cercavam gritaram quando as balas os atingiram, ou se os homens na vala gemeram ao morrer. Ele se lembra apenas de um momento de silêncio oco, quando os soldados pararam de atirar.
Depois, surgiu o rugido grave e ritmado de uma escavadeira, e o ruído surdo da terra úmida caindo por sobre os corpos. Ele sobreviveu, mas viu centenas de outros inocentes enterrados em mais uma das anônimas valas comuns de Saddam Hussein.
O campo de matança de Hilla fica em meio a campos marcados por explosões, plantações de tamareiras e pastos eriçados onde ovelhas e bois se alimentam. Mesmo hoje, depois que os restos destroçados por balas de 3.000 pessoas foram removidos do solo, não há muita coisa de característico na paisagem pastoral do lugar.
O que é notável sobre Hilla é que se trata de apenas uma das dezenas, talvez centenas, de valas comuns espalhadas pelo Iraque.
Ninguém sabe realmente quantas pessoas foram massacradas pelo governo iraquiano ao longo dos últimos 35 anos. Aparentemente, os governantes mataram seus próprios cidadãos em escala gigantesca, de maneira tanto sistemática quanto indiscriminada.
Os grupos de defesa dos direitos humanos, que tentaram documentar as dimensões do massacre por muitos anos, estimam que haja cerca de 300 mil iraquianos desaparecidos, provavelmente vítimas de execuções. Dezenas de milhares de cidadãos iraquianos, além disso, foram aprisionados e torturados, de acordo com os grupos oposicionistas iraquianos, e tiveram suas vidas permanentemente marcadas pelo que viram e experimentaram.
As execuções aconteceram a partir do final dos anos 70 e ao longo dos 80, quando os vizinhos árabes do Iraque e a maior parte dos governos ocidentais consideravam que Saddam Hussein era um baluarte contra a ameaça de militância islâmica vinda do Irã.
E execuções ocorreram, de acordo com testemunhas, enquanto tropas norte-americanas ocupavam boa parte do sul do Iraque, às vezes áreas muito próximas aos campos de extermínio, nas semanas que se seguiram à Guerra do Golfo (1991).
O governo matou cidadãos em expurgos dirigidos contra grupos oposicionistas específicos, como os comunistas, e matou para reprimir as ambições políticas da maioria muçulmana xiita. Matou parentes de dissidentes, líderes religiosos muçulmanos e cristãos cuja lealdade lhe era suspeita. Matou curdos, com balas e gás venenoso, em uma campanha indiscriminada que tinha por objetivo subjugar todo um grupo étnico.
O Iraque pós-Saddam é um reflexo das misérias infligidas a seu povo. Mas também vem redescobrindo sua dor, agora que as prisões se esvaziaram e a realidade das valas comuns foi exposta.
A cada dia, jovens da aldeia de Husseini, vizinha da vala comum de Hilla, vêm para embalar cuidadosamente as ossadas não reclamadas em faixas de musselina branca, fazendo pequenos pacotes atados nas duas extremidades. Às vezes, simulando a tradição muçulmana de banhar os mortos, eles acariciam gentilmente os crânios expostos.
Os homens de Husseini fazem esse trabalho porque querem localizar os 60 homens levados de sua aldeia em março de 1991, quando soldados da Guarda Republicana reprimiram brutalmente um levante xiita.
Mesmo que estivessem gratos pela invasão americana que derrubou o governo do Iraque, essa gratidão se amargura a cada pilha de ossos exumados. As tropas dos EUA ocupavam parte do Iraque quando essas mortes aconteceram, dizem eles, mas simplesmente não se mexeram.
"Por todos esses anos, as famílias dessas pessoas estavam esperando que elas voltassem para casa", disse Raid al Husseini, um médico da aldeia, observando a paisagem repleta de marcas de morticínio. "Todos esses anos, desde 1991, Saddam Hussein estava vivo. Mas o povo iraquiano foi abandonado, como morto, quer estivessem caminhando pela terra quer jazendo em uma vala comum".

Jovens
O Iraque é uma terra de sobreviventes atormentados e de fantasmas. "E de milagres", diz Shaati, que precisou de um para sobreviver à execução em um campo escuro perto de Hilla, 12 anos atrás.
Aos 39 anos, ele não havia contado a ninguém, exceto seu pai, o que viu na vala. "Ele me disse que não contasse essa história a ninguém, porque as pessoas saberiam que sou uma testemunha e eu seria morto", disse. Em 1991, ele era apenas um soldado cansado tentando voltar para casa.
O Exército iraquiano, expulso do Kuait pelas forças lideradas pelos norte-americanos, estava se desintegrando. Enquanto entrava em colapso, o controle do governo sobre as cidades xiitas do sul e sobre boa parte do norte, a região curda do país, se esboroava. Estimulados pela sugestão do então presidente George Bush de que se rebelassem contra Saddam, os iraquianos atacaram edifícios do governo e mataram funcionários do partido governista Baath.
Em meio ao pandemônio, Shaati tentou fugir para casa, chegando a Hilla no momento em que essa cidade, majoritariamente xiita, começava sua débil revolta contra o ditador, no começo de março.
Em pouco mais de uma semana, unidades da Guarda Republicana chegaram e começaram a deter quaisquer jovens que encontrassem na área.
Shaati foi preso um dia às 4h e transferido para a base militar de Mahawil, uma área extensa ocupada por armazéns de aço corrugado e edifícios baixos de concreto que se tornou um ponto de partida para as matanças daquele período.
Enquanto os prisioneiros se angustiavam à espera de instruções, soldados iraquianos abriram fogo contra a multidão, relembra Shaati. "Lembro-me de um oficial que gritou que se eles nos matassem ali acabariam sujando todo o lugar com nosso sangue e nossos dejetos. Mandou que nos levassem a outro lugar e nos matassem." Assim, os soldados pararam de atirar e os aprisionaram no interior dos grandes armazéns.
Shaati passou seis dias lá, em uma sala lotada, sem água ou comida. Um homem que ele conhecia, e sofria de úlcera, morreu aos seus pés. "Depois de dois dias, o cheiro de seu corpo era horrível, e pedimos que o cadáver fosse removido. Mas ninguém fez nada a respeito", afirma.
Os soldados os removeram dos armazéns em grupos de cem ou 150 pessoas. Quando chegou sua hora, Shaati foi instruído a tirar a camiseta e rasgá-la em tiras, usadas para cobrir seus olhos e atar suas mãos. Os prisioneiros foram empurrados para um ônibus, todos se segurando com os dentes à roupa do prisioneiro em frente. Quando chegaram a um descampado -Shaati não está certo sobre a localização-, a vala que os receberia já tinha sido preparada.
"Eles nos levaram por uma rampa para dentro de um buraco longo e largo", disse. "O silêncio era notável. Ninguém caiu ou sequer chorou. Fiquei muito perto do canto, talvez o segundo ou terceiro prisioneiro a contar da lateral. Então, começaram a atirar. De alguma maneira, não fui atingido. A essa altura, eles não se davam ao trabalho de atirar em um por um."
Depois que a vala foi recoberta de terra, Shaati, vivo mas sufocado, conseguiu escavar seu caminho para fora da sepultura comum. Ele usou a cabeça para atravessar a camada de terra, e se libertou do tecido que o mantinha amarrado.
Ele tem uma explicação para o fato de as forças norte-americanas, 12 anos mais tarde, terem conseguido conquistar o Iraque com tanta rapidez. "Nós não lutamos", disse. "Não é que tivéssemos medo dos americanos. Mas vendemos nosso país para nos livrarmos de Saddam Hussein."

Culpa por associação
Depois das surras e dos choques elétricos, Suriya Abdel Khader se veria uma vez mais em uma cela fétida, uma sala tão lotada que a maior parte dos prisioneiros podia apenas ficar em pé. As mulheres morriam em pé, e caíam ao solo já mortas, mas Abdel Khader se lembra de ter registrado apenas uma pontada tênue de incômodo com o que quer que estivesse acontecendo em torno dela.
"Tirem esse cadáver do caminho", ela costumava pensar. "Está ocupando espaço."
Ela foi aprisionada, acredita, porque seus quatro irmãos foram detidos em meio às medidas generalizadas de repressão aos xiitas adotadas por Saddam, que suspeitava que eles apoiavam o Irã.
A detenção sistemática de xiitas, as torturas e as execuções que começaram em 1979 foram os primeiros grandes expurgos decretados pelos líderes iraquianos. Os homens foram detidos primeiros. Mas não demorou muito para que famílias inteiras fossem engolidas pelas prisões e pelos campos de extermínio.
"Eles detiveram o primeiro de meus irmãos em 1980", diz Abdel Khader, uma mulher robusta, de olhos azuis, que tem procurado nas valas comuns por traços de seus irmãos desaparecidos. "Ele tinha 16 anos. Era parte de um grupo que o regime temia: costumava rezar na mesquita."
Dois outros irmãos, de 17 e 18 anos, foram detidos em 1985, quando soldados iraquianos deram uma batida em uma fazenda distante onde muitos jovens xiitas se haviam refugiado para escapar às revistas de casa em casa promovidas pelo governo. Ela descobriu que um amigo de seus irmãos fora ferido, de modo que deixou bandagens para ele perto da fazenda. No mesmo dia, foi detida, junto com seu pai, irmã e um irmão de três anos.
Ela passou um ano sendo transferida entre diferentes prisões e centros de tortura, sem descanso. Os seus algozes a penduravam pelos braços, amarrados por trás de seus costas, em um gancho no teto. Choques elétricos eram usados, ocasionalmente. Ela também levou surras nas solas dos pés, até que estes estivessem inchados de sangue, e suas unhas caíssem.
Abdel Khader tinha 25 anos. "Tive sorte porque meu corpo morreu", disse. "Eu não estava consciente daquilo que acontecia em torno de mim. Não havia água, não havia banheiro. A única comida eram duas grandes panelas que eles traziam, uma com arroz sujo e uma com sopa. Era preciso lutar por alimento. Se você fosse forte e saudável, conseguia comer. Os fracos esperavam."
Depois da tortura veio o falso julgamento, e finalmente a sentença de prisão perpétua na penitenciária feminina de Rashad, um labirinto de celas sem aquecimento onde o esgoto vazava de um dos sanitários no corredor e inundava os colchões duros das prisioneiras. "Eles nos faziam esperar pela água", conta ela, "e era preciso recolhê-la gota a gota dos canos, de manhã cedo".
As mulheres sentenciadas à morte eram mantidas no mesmo pavilhão em que ela estava.
Ela foi libertada em 1991, em uma das esporádicas anistias promovidas por Saddam, e se casou com um homem que perdera cinco irmãos na mesma campanha contra os xiitas.

Execuções aleatórias
Escavando a terra, Abdelhassan al Mohani recolheu o esqueleto de seu irmão, osso a osso.
Ele se ajoelhou na cerca de um cemitério perto da aldeia de Muhammad Sakran, bem perto de Bagdá. A inscrição quase apagada em uma braçadeira de plástico encontrada na vala estabelecia que se tratava de seu irmão, Abdelhussein. Mohani segurou a caveira e gentilmente limpou a terra acumulada na cavidade ocular. Só então chorou.
Abdelhussein desapareceu a caminho de seu trabalho, em Bagdá, em 23 de janeiro de 1981. Sua família jamais recebeu informações do governo, mas terminou por chegar à conclusão inevitável: como xiita, fora detido na campanha de repressão.
Em 11 de abril de 1991, algumas semanas depois de iniciada a rebelião xiita, helicópteros iraquianos lançaram panfletos sobre a cidade de Karbala ordenando que todos os habitantes partissem, sob ameaça de ataque com armas químicas. Mohani empilhou a família inteira em uma picape e em seu carro, e eles fugiram.
Cerca de seis quilômetros ao sul da cidade, sua rota de fuga estava bloqueada. Naquele posto de bloqueio, conta, ele viu o genro de Saddam Hussein, Hussein Kamal, executando pessoas aleatoriamente. "Ele dizia às pessoas que saíssem de seus carros e atirava nelas; atirou até que seu braço não agüentasse mais o esforço."

Marcas permanentes
"Reze". Foi essa a última coisa que a mãe de Nasir al Husseini disse a ele antes que o tiroteio começasse. Foi em abril de 1991, e eles haviam se arriscado a sair para uma caminhada em sua aldeia de Sadha, na companhia de dois parentes de 12 anos de idade.
Em um posto de fiscalização, eles foram detidos por soldados iraquianos e terminaram presos. Dois dias mais tarde, amarrados e vendados, foram jogados em um campo aberto na companhia de centenas de outras de pessoas.
Husseini só tinha 10 anos. "Chegamos a um lugar em que um buraco já fora escavado por uma escavadeira", conta.
A mãe tentou mantê-lo próximo, mas as mãos dela estavam amarradas e ela não podia abraçar as crianças. Todos tropeçaram para dentro da cova.
"Eles começaram a atirar contra nós, mas não fui atingido", conta Husseini. "Caí por cima de minha mãe. Alguém entrou no buraco e me puxou pelo colarinho, gritando que me dessem um tiro. Eu tentei me fingir de morto. E eles começaram a atirar em mim de novo, mas ainda assim não me atingiram."
"Eu continuava a ouvir os sons dos motores dos ônibus, mas depois de algum tempo ouvi que se afastavam", prossegue. "Ouvi com atenção, e surgiu o silêncio. Depois, levantei minha cabeça e saí do buraco. Vi apenas um pequeno monte de terra no lugar onde antes havia um buraco."
Quando as pessoas começaram a exumar corpos nos campos de Hilla há cerca de três semanas, Husseini voltou ao pesadelo, participando da busca.
"Caminhei e removia a terra com os pés, e vi uma camisa furada de balas", conta, descrevendo sua busca pelo corpo da mãe. Mas ele não a encontrou.
Husseini, 22, é um jovem solitário, com cabelos cacheados que recobrem sua fronte. "Nunca me permiti viver, essas anos todos", disse. "Todo dia eu pensava que eles viriam e me levariam. Estava sempre à espera."


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