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Invasão de privacidade
Após atentados, americanos aceitam trocar conquistas históricas por mais segurança
Críticos do pacote antiterror dizem que falta inteligência humana, não controle eletrônico
MARCIO AITH
DE WASHINGTON
Para um grupo de parlamentares e as entidades protetoras de liberdades civis, o pacote antiterrorismo proposto pelo governo dos
EUA expande exageradamente o
poder de vigilância do Estado sobre cidadãos e instala, dentro de
cada lar, uma autoridade onipresente similar à do Big Brother
(Grande Irmão), personagem
imaginado por George Orwell em
sua obra "1984".
Curiosamente, pesquisas de
opinião indicam um apoio maciço da população à maioria dessas
medidas, uma resposta aos atentados que mataram cerca de 6.000
pessoas em Nova York e no Pentágono (leia na página A-19).
Para se proteger, norte-americanos mostram-se dispostos a jogar no lixo conquistas históricas
que fazem parte do "american
way of life" e formaram a base
central da democracia de pesos e
contrapesos do país. Ao menos
no plano teórico, os Estados Unidos aceitam pagar, com um pedaço de sua privacidade, o preço para livrarem-se do terrorismo.
No entanto, um estudo mais
atento sobre esse debate revela
desafios mais complexos que o dilema liberdade versus segurança e
expõe fortes interesses econômicos e o uso intenso de retóricas,
oficiais e não-oficiais.
Esse debate já era intenso e tinha impacto na vida das pessoas
antes mesmo dos atentados do último dia 11 de setembro. Com os
atentados, os EUA acordaram para o assunto.
Mais vigilância
No ano passado, a Prefeitura de
Jersey City, cidade com uma comunidade islâmica numerosa e
de onde terroristas planejaram o
atentado de 1993 ao World Trade
Center, instalou câmaras de vídeo
em quase todas as ruas do centro.
Alguns moradores sentiram sua
privacidade atingida.
Em Tampa, na Flórida, todos os
torcedores que foram ver a final
do campeonato de futebol americano, em janeiro deste ano, tiveram seus rostos gravados em vídeo e comparados com um banco
de dados de "procurados" por um
software de reconhecimento facial. O mesmo programa é usado
em Ybor, região que concentra a
vida noturna de Tampa.
A empresa que desenvolveu o
sistema, a Viisage, é líder de um
mercado milionário. Para "refinar a sua clientela", separando
doentes de saudáveis e bons motoristas dos barbeiros, seguradores estão pagando a governos estaduais valores anuais de até
US$ 5 milhões (exemplo de um
caso no Colorado) para terem
acesso a uma base de fotos e de registros de carteiras de motoristas
formulada pela Viisage.
Na esteira dos atentados do dia
11 de setembro, outra companhia
do setor ofereceu de graça ao FBI
(a polícia federal dos Estados Unidos) um software semelhante para "caçar terroristas".
"Independentemente do combate ao terrorismo, os americanos
já estavam admitindo, como algo
inevitável e incontrolável, o uso
de suas informações confidenciais por grandes empresas", diz
Grayson Barber, advogado especializado em direito à imagem.
Para ele, uma das explicações
para a aceitação do pacote antiterrorismo pode ser a seguinte: "Já
que a invasão de privacidade é
inevitável, pelo menos usem esse
abuso para pegar terroristas".
Nenhum assunto é mais sensível que o monitoramento da internet pelo governo. Há alguns
anos, o FBI desenvolveu um sistema chamado Carnivore.
Trata-se de um aparelho (uma
caixa preta) que, quando acoplado aos provedores de internet, é
capaz de grampear o tema dos e-mails e o conteúdo das home pages visitadas pelo internauta.
Desde 1986 o FBI precisa obter
ordem judicial para interceptar
comunicação via internet, comparando-a às ligações telefônicas.
O pacote dispensa essa exigência
"em casos excepcionais".
O critério do que é excepcional
será definido pelo governo.
Como o Carnivore intercepta
não só a comunicação de um único internauta, mas de todos os
clientes do provedor onde tiver sido instalado, o pacote antiterror,
em tese, permite o monitoramento de milhares de pessoas ao mesmo tempo. Esse tipo de ameaça à
privacidade não tem preocupado
os juízes americanos.
Nos últimos três anos, só ocorreram duas negativas para o uso
do Carnivore. No ano passado,
dos 2.202 pedidos de grampo, não
houve nenhuma negativa. Para
fortalecer aqueles que defendem
maior controle, um juiz negou em
agosto último uma autorização
para instalar o Carnivore justamente no provedor de um dos
suspeitos de ter arquitetado o ataque ao World Trade Center, o
franco-marroquino Zacarias
Moussaoui. Ele está preso porque
seu professor numa escola de
aviação desconfiou de seu desinteresse por decolagem e pouso.
Falta inteligência humana
Para Bill Malik, diretor da empresa de segurança Gartner, as
preocupações sobre liberdades civis podem até fazer sentido, mas
seria inocente imaginar que terroristas possam ser monitorados só
com as leis atuais.
"É infantil a idéia de que bandidos comunicam-se por meio de
um só telefone ou um único endereço eletrônico. Eles mudam, e o
FBI precisa acompanhar essas
mudanças", defende.
Segundo Malik, o desafio não é
só equilibrar as liberdades civis e a
segurança. "Poucos ousam colocar a verdadeira questão: será que
a privacidade total é uma idéia antiga?"
"Isso é uma falácia", responde
Will Doherty, diretor da Eletronic
Frontier Foundation, uma entidade cujo objetivo é harmonizar as
novas tecnologias e a proteção às
liberdades civis. "Associar automaticamente segurança a restrições às liberdades civis é um erro.
A única inteligência do governo
que precisa ser fortalecida é a humana, e não a eletrônica."
Doherty dá o exemplo das imagens gravadas por câmeras de alguns dos supostos sequestradores
dos aviões: "Alguns foram gravados comendo pizza, outros tirando dinheiro em bancos e até fazendo compras no Wal-Mart. Para que serviram essas imagens se a
CIA e o FBI não sabiam que eles
eram terroristas?".
Segundo Doherty, mais importante do que invadir a privacidade
das pessoas é checar se os instrumentos tradicionais de inteligência (infiltração em grupos terroristas e cooptação de seus integrantes) estão funcionando.
"Não estou criticando o FBI,
mas, se dermos instrumentos poderosos nas mãos de instituições
não preparadas, só os inocentes
vão sofrer", argumenta.
Depois de ser atenuado pela Câmara norte-americana, o pacote
alternativo à proposta antiterror
da Casa Branca autoriza o grampo de telefones e o rastreamento
de comunicações pela internet
mesmo sem uma ordem judicial.
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