São Paulo, domingo, 07 de outubro de 2001

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VIZINHO

Ex-república soviética serve de entrada de armas para Aliança do Norte, que combate o Taleban

Armas entram pelo Tadjiquistão

Associated Press
Integrantes do Exército da Rússia, que fazem a proteção da fronteira do Tadjiquistão com o Afeganistão, marcham diante de painel em campo de treinamento próximo a Duchambe, capital tadjique


KENNEDY ALENCAR
ENVIADO ESPECIAL A DUCHAMBE

Apesar de independente de Moscou desde 9 de setembro de 1991, o Tadjiquistão é um país que aplica ao pé da letra uma máxima atribuída a Garrincha: combinar antes com os russos. Essa regra vale para tudo, da política aos negócios ilegais.
Em 1992, o Pacto Tadjique permitiu à Rússia o controle total das fronteiras do país com o Afeganistão. Moscou mantém 15 mil soldados na divisa e mais 10 mil no interior. Esse acordo, que inclui o espaço aéreo, foi assinado para proteger o muçulmano Tadjiquistão da "ameaça do extremismo islâmico". O presidente do país, Emomali Rakmonov, é um ex-membro do antigo Partido Comunista soviético e político da total confiança dos russos.
O Pacto Tadjique ajuda a Aliança do Norte, grupo afegão que luta contra o Taleban e controla parte do Afeganistão, a receber armas e suprimentos russos. Esse socorro é fundamental para as batalhas contra o grupo extremista islâmico que domina quase todo o Afeganistão e para garantir o controle territorial de parte do norte do país.
Em troca, a máfia russa, com consentimento tácito dos oficiais que controlam a fronteira, obtém parte do ópio e da heroína que são consumidos em Moscou e na Europa. A Aliança do Norte nega facilitar esse comércio, mas, por baixo do pano, alguns de seus líderes tribais atuam como manda-chuvas no ramo.

Esperteza
Em Duchambe, está uma das embaixadas da Aliança do Norte, cujos membros formam um governo reconhecido pela ONU (Organização das Nações Unidas) como a legítima administração do Afeganistão. O local é procurado por homens como o jovem Dilshod, que buscam um bico com os jornalistas estrangeiros que vieram cobrir a crise.
Dilshod se oferece para trabalhar como tradutor e motorista dos jornalistas estrangeiros. Apesar da pouca idade, 19 anos, já sabe transitar bem entre a máfia, o governo tadjique e os rebeldes afegãos. Do tipo do sujeito cuja esperteza acaba engolindo o dono, ele quer cobrar US$ 150 por meio dia de trabalho, mas acaba aceitando US$ 50 quando o cliente ameaça abandoná-lo.
Em pouco mais de seis horas de trabalho, tentou passar a perna no repórter da Folha pelo menos três vezes. Quis vender um saco de dormir velho por US$ 250, trocar dólares pela moeda local (somonis) por uma taxa exorbitante e propôs uma viagem de carro só de ida à fronteira afegã pelo "preço amigo" de US$ 1.000.
O saco de dormir sai por US$ 130 no comércio, que vendia a mesma mercadoria por US$ 70 na semana passada. A taxa de câmbio deveria ser de US$ 1 por 27 somonis. Nos hotéis, a conversão é de US$ 1 por 25 -Dilshod propôs 1 por 20. A viagem de cerca de 250 km até a fronteira pode ser feita por US$ 500, se não houver muita bagagem.

Temor
Dilshod recomenda o Café Sirius "para comer bem e conversar". Por coincidência, é onde a namorada almoça na sexta-feira com as amigas quando termina a aula na universidade. A conversa da cidade é o cerco a Cabul (capital afegã) que a Aliança do Norte está preparando.
A jovem Raushanak apóia a contragosto a Aliança do Norte. "Eles [os rebeldes" tratam as mulheres tão mal quanto o Taleban, mas não são extremistas em outros assuntos", diz. Ela afirma que seu país não tem escolha e deve apoiar os oposicionistas, entre os quais pessoas de origem tadjique.
O antigo comandante da Aliança do Norte, morto em atentado dois dias antes dos ataques a Nova York e ao Pentágono, Ahmad Shah Massoud, era de uma tribo tadjique. Os traços físicos desse grupo étnico são uma mistura dos povos eslavo, árabe e chinês.
O temor de Raushanak, uma bela estudante de direito de 22 anos, é que o Tadjiquistão comece a ser vítima de atentados fundamentalistas após um ataque dos EUA ao Afeganistão. Seu colega de escola, o grandalhão Milo, com mais de 1,90 metro e 22 anos, também tem o mesmo medo que Raushanak: "O Taleban é formado por loucos. Se perderem o poder, vão começar a fazer ataques suicidas aqui e em outros lugares, principalmente nos Estados Unidos e na Europa".
Raushanak e Milo são exemplos típicos da juventude muçulmana de Duchambe: adoram música americana, bebem álcool, gostam de usar jeans, mas são conservadores quando o assunto é casamento, virgindade e aborto.
Apesar da forte influência russa, têm uma certa aversão ao vizinho dominador e gostam de misturar gírias tadjiques quando falam russo. Os idiomas do país são o russo e o tadjique. Com orgulho nacional, contam que vibraram quando uma enorme estátua de Lênin foi trocada pela do rei Somoni, o pai da nação que criou, no século 9º, um Estado independente onde hoje é o Tadjiquistão.
Depois que termina de namorar, Dilshod dá uma dica sobre o melhor lugar para um estrangeiro ir à noite, o Cassino Internacional. Além de achar lá o que o nome promete, o cassino é um dos pontos de venda de drogas e da prostituição da capital.
Duchambe é uma cidade arborizada, com avenidas largas e prédios antigos em mal estado de conservação. O nome da cidade significa "o dia da semana", em tadjique. A explicação é que a cidade sempre foi um ponto de atividades comerciais. A população da cidade é de cerca de 600 mil habitantes, 10% de todo o país. O Tadjiquistão é uma das mais pobres ex-repúblicas soviéticas, senão a mais pobre.
Estrangeiros que trabalham em entidades de assistência a refugiados formam uma comunidade a parte em Duchambe. O paquistanês Dost Mohammad Yousafzai, um dos membros do programa afegão do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), nunca fica na rua após as 22h. "Não é seguro, especialmente para estrangeiros e mais ainda para paquistaneses". O Tadjiquistão sempre foi crítico do apoio que o Paquistão deu ao Taleban e já prometeu apoiar os EUA na "guerra contra o terrorismo" -deu permissão para uso de seu espaço aéreo e bases, mas não explicitamente para ataques contra o vizinho.
Segundo Dost, há cerca de 100 mil refugiados na fronteira norte do Afeganistão. "Muitos eram a favor do Taleban, mas estavam em cidades que foram recapturadas pela Aliança do Norte e fugiram temendo retaliação", afirma. Com ar cansado, diz que um dos principais problemas do Afeganistão é exatamente a "velha intolerância étnica". Para Dost, a eventual queda do Taleban não garantirá o fim dessa intolerância.


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