São Paulo, quinta-feira, 08 de abril de 2004

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"Não aprendemos nada", diz ex-chefe da Cruz Vermelha

OTÁVIO DIAS
DA REDAÇÃO

Philippe Gaillard, 48, era chefe da delegação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha em Ruanda há dez anos. Presenciou o genocídio de cerca de 800 mil ruandeses desde o primeiro dia. Até hoje não se conforma com a omissão da comunidade internacional e das Nações Unidas.
"Se o que aconteceu em Ruanda se repetisse novamente na África ou em alguma outra região do mundo com pouca importância política, haveria um novo genocídio", afirma. "Não tiramos nenhuma lição. Não há nada para celebrar", diz. Leia entrevista concedida por telefone à Folha de Lima, no Peru, onde trabalha agora. (OTÁVIO DIAS)

 

Folha - Que lições foram tiradas do genocídio em Ruanda?
Philippe Gaillard -
Se o que aconteceu em Ruanda se repetisse novamente na África ou em alguma outra região do mundo com pouca importância política, haveria um novo genocídio. A comunidade internacional não fez nada e não faria nada novamente. Todo o mundo acompanhou ao vivo pelas TVs o massacre em Ruanda. Foram cem dias trágicos durante os quais morreram entre 800 mil e 1 milhão de pessoas. Sem falar nos que sobreviveram e são o testemunho vivo das loucuras que o homem é capaz de fazer. Não tiramos nenhuma lição. Não há nada para celebrar.

Folha - Por que a comunidade internacional não aprendeu nada?
Gaillard -
O motivo não é falta de informação, mas de vontade política. Ruanda é um país sem importância política, e a comunidade internacional, sabendo exatamente o que estava acontecendo, não fez nada. Nós, da Cruz Vermelha, somente com nossa tenacidade e capacidade de negociação, conseguimos salvar entre 60 mil e 70 mil vidas. Nosso grupo tinha 200 pessoas, sem armas. Se a ONU, em vez de reduzir seu contingente de cerca de 3.000 soldados antes do genocídio para menos de 400, houvesse duplicado o número de militares, quantas vidas não poderiam ter sido salvas?

Folha - O que deve ser feito para impedir novos massacres?
Gaillard -
Por que a ONU não cria uma força permanente para atuar em casos como o de Ruanda? Uma força de intervenção com toda a logística já preparada para agir rapidamente, com soldados bem treinados e bem armados, que conheçam as regras do jogo, dos direitos humanos. Dez mil homens bem preparados, com capacidade para entrar em ação em 48 horas. A comunidade internacional pode bancar isso.

Folha - O sr. admite a necessidade de, em certos casos, ir à guerra para impedir uma catástrofe humanitária?
Gaillard -
Não há guerra humanitária. Uma guerra é uma guerra; o aspecto humanitário é outra coisa. Mas o Conselho de Segurança da ONU tem a responsabilidade de, em casos extremos, enviar soldados a um país para manter a ordem, prender os responsáveis por violações e colocá-los à disposição do [recém-criado] Tribunal Penal Internacional. A máquina legal existe, por que não utilizá-la?

Folha - Uma atuação como essa, sob a égide da ONU, é diferente de uma intervenção militar comum?
Gaillard -
Há diferença de objetivos porque uma operação militar em geral busca ocupar um país, derrotar um governo, obter recursos pela força. Uma operação da ONU teria como objetivo frear a violência e impedir mortes inúteis. E sancionar os responsáveis.


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