São Paulo, sexta-feira, 08 de abril de 2005

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A MORTE DO PAPA

Reflexões sobre a morte
por
KAROL WOJTYLA

DA REDAÇÃO

Uma preocupação constante com a própria morte e o questionamento sobre a possibilidade de sua missão já estar cumprida marcam o texto deixado pelo papa João Paulo 2º como seu testamento espiritual.
O documento, revelado ontem pelo Vaticano, foi escrito em 6 de março de 1979 e recebeu sete adendos, sendo o mais longo deles redigido em 2000.
Entre os assuntos mencionados pelo pontífice estão o colapso do comunismo, o fortalecimento das famílias e a perseguição sofrida pelos católicos em "alguns países", além do atentado sofrido em 1981. Mas a maior parte das reflexões deixadas pelo polonês Karol Wojtyla referem-se mesmo à espera por seus momentos finais.
"Todos devem ter presente a perspectiva da morte. E devem estar preparados para se apresentar diante de seu Senhor e Juiz e, simultaneamente, Redentor e Pai. O fato é que eu tenho esse momento em consideração continuamente e deposito minha fé na Mãe de Cristo e na Igreja -mãe de minha esperança- para o momento decisivo", escreveu o papa em 1980, em seu segundo adendo (o primeiro adendo não traz datas).
Mais de uma vez, nas oito páginas de texto, o papa também questiona se seu dever já não estaria cumprido e se não seria hora de Deus "deixá-lo partir".
As divagações levaram a imprensa mundial a afirmar que o pontífice estava contemplando a possibilidade de renunciar, embora em nenhum momento de seu texto João Paulo 2º tenha usado a palavra ou feito uma alusão clara. Mais do que isso, no início do documento original, ele afirma acreditar que Deus não permitirá omissões de sua parte: "Ele não permitirá que por quaisquer palavras, atos ou omissões de minha parte sejam traídas as minhas obrigações com relação à Sede Petrina", escreve.

Controvérsia sobre renúncia
O trecho que provocou controvérsia cita um trecho bíblico, o Cântico de Simeão, do Evangelho de Lucas. "Foi-me dado viver o difícil século que está se tornando parte do passado, e agora, no ano em que minha vida chega aos oitenta anos ("octogésima advienens"), é preciso que eu me pergunte se não é hora de seguir o exemplo de Simeão, na Bíblia, "Nunc dimittis'", escreveu João Paulo 2º em 2000.
O personagem bíblico citado, Simeão, era um homem de idade avançada que vivia em Jerusalém e esperava o dia de sua morte. Mas o Espírito Santo lhe revelara que este só viria depois do dia em que ele visse o Cristo do Senhor. No trecho que o papa mencionou, "Nunc dimittis", Simeão visita o menino Jesus, toma-o nos braços e diz a Deus: "Agora, Soberano Senhor, podes dispensar em paz o Teu servo, segundo a Tua palavra, porque meus olhos viram a Tua salvação".
Embora o trecho aluda à morte, como a maior parte do testamento espiritual de João Paulo 2º, a palavra "dimittis" permite mais de uma tradução. Segunda pessoa do singular da forma indicativa do verbo "dimitto", ela tem como sentido mais genérico "mandar para outro lugar". Traduções possíveis são "ir-se", "partir", "dispensar", "romper", "renunciar". A raiz do verbo "dimitto" também aparece na palavra portuguesa "demitir".
A interpretação feita por boa parte da mídia, entretanto, foi de que se tratava de uma menção à renúncia. Nos últimos anos de vida do papa, quando o mal de Parkinson que o acometia já estava em fase avançada, a hipótese de renúncia era constantemente levantada por observadores de dentro e de fora da igreja, ainda que o pontífice, para todos os efeitos, a rechaçasse.
"Um engano da mídia sobre a renúncia do papa", escreveu o diário italiano "Corriere della Sera" em sua versão eletrônica. "De nenhuma maneira, um homem como Karol Wojtyla mencionaria o cântico de Simeão em referência à intenção de renunciar", segue o texto, afirmando que tudo se tratou de um erro de tradução.
O que parece ser uma menção mais próxima da "dispensa" pedida pelo papa a Deus vem num trecho seguinte, no qual Wojtyla afirma: "Espero que o Senhor me ajude a reconhecer até quando devo continuar este serviço, ao qual me convocou em 16 de outubro de 1978". Mas segue, mais uma vez citando a própria morte: "Peço-Lhe que me chame quando assim preferir".

Guerra Fria
João Paulo 2º ressalta por mais de uma vez a dificuldade dos tempos em que viveu e sua responsabilidade em introduzir a igreja no terceiro milênio. Mas observa que apesar das turbulências a situação se amenizou com o fim da Guerra Fria, para o qual contribuiu.
"Depois do outono de 1989, a situação mudou. O último decênio do século passado se viu livre das tensões precedentes, o que não significa que não tenha acarretado novos problemas e dificuldades. Agradeço em especial à Divina Providência pelo período da dita "Guerra Fria" se ter encerrado sem um violento conflito nuclear, um perigo que pesava sobre o mundo no período precedente", escreve o papa.
Ele também afirma que, principalmente após ter sofrido um atentado contra sua vida, colocava-a inteiramente nas mãos de Deus e pede que sua morte sirva para perpetuar sua missão. "Espero ainda que minha morte seja útil para a muito importante causa à qual procuro servir: a salvação dos homens, a salvaguarda da família humana, e no seio desta todas as nações e povos (com consideração especial à minha pátria terrena), que seja útil para as pessoas que confiaram em mim, particularmente, para as questões da Igreja e para a glória de Deus."


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