São Paulo, sábado, 08 de abril de 2006

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ARTIGO

Condi e Rummy

THOMAS FRIEDMAN
DO "NEW YORK TIMES"

É difícil saber se devemos rir ou chorar diante da disputa entre a secretária de Estado, Condoleezza Rice, e o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, em torno de se os EUA cometeram erros "táticos" na Guerra do Iraque.
Caso você não tenha tomado nota da discussão, Rice disse na sexta-feira da semana passada: "Sei que cometemos erros táticos -milhares, tenho certeza", mas afirmou que os historiadores, no futuro, enxergarão como correta a grande decisão estratégica de afastar Saddam do poder.
Na terça-feira passada, Rumsfeld declarou: "Para ser honesto, não sei do que ela estava falando". Em seguida, ele proferiu tolices incoerentes sobre como sempre é preciso mudar de tática em uma guerra: "Se você tivesse uma situação estática e cometesse um engano na maneira de tratar essa situação estática, seria uma coisa. O que temos aqui não é uma situação estática: temos uma situação dinâmica, com um inimigo que pensa, que usa a cabeça, que se reajusta constantemente. Logo, nossos comandantes são obrigados a constantemente fazer ajustes táticos". Por onde podemos ao menos começar? Para início de conversa, Rice está equivocada ao dizer que os erros cometidos pela equipe de Bush no Iraque foram puramente táticos.
Sob a direção de Rumsfeld, a equipe cometeu um erro estratégico monumental, ao não enviar tropas suficientes para controlar as fronteiras do Iraque e preencher o vácuo de segurança que nós mesmos criamos ao derrubar Saddam -vácuo que, desde então, foi preenchido por saqueadores e por dezenas de milícias sectárias e gangues de degoladores.
Eis a verdade brutal de como estamos no Iraque hoje: após mais de três anos, mais de US$ 300 bilhões e milhares de baixas americanas e iraquianas, ainda não temos um governo ou um Exército iraquianos capazes de se manter sem ajuda dos EUA.
Ainda não existe um Iraque em processo de democratização e capaz de manter-se por conta própria. E, mesmo que, com o tempo, consigamos estabelecer um governo de união nacional nesse país, não está claro que ele conseguirá inverter o mergulho do Iraque no sectarismo e nas milícias. Ninguém mais sabe se os iraquianos que vestem uniformes trabalham para o Estado ou para as milícias insurgentes.
Outro dia, o blogueiro iraquiano Riverbend, que escreve para a Salon.com, contou que estava assistindo à TV iraquiana quando uma mensagem em árabe surgiu: "O Ministério da Defesa pede que a população civil não obedeça às ordens de integrantes do Exército ou da polícia em patrulhas noturnas, a não ser que eles estejam acompanhados por membros das forças da coalizão que estejam trabalhando nessa região". Tradução feita pelo blogueiro: muitos dos integrantes das forças de segurança iraquianas "na realidade são milicianos aliados a partidos religiosos e políticos".


Os EUA fizeram um monumental erro estratégico ao permitir o vácuo de segurança criado após a queda de Saddam

Ainda não há um Iraque em processo de democratização, capaz de manter-se e de impedir o mergulho no sectarismo


Na condição de alguém que acredita na importância de construir uma política progressista no Iraque, no coração do mundo árabe, me dói dizer o que direi agora: estamos mergulhados em problemas sérios aqui.
Alguns críticos acham que a invasão do Iraque esteve relacionada unicamente ao petróleo. Eles estão tão enganados! Na verdade, é algo muito mais maluco -e mais nobre- do que isso. Essa região só conheceu monólogos ditados de cima para baixo: potências coloniais, depois reis e ditadores, sempre governando a população de cima para baixo e se impondo com mão-de-ferro. O que estamos tentando promover no Iraque é algo que não tem precedentes: o primeiro diálogo horizontal, de baixo para cima, entre comunidades que compõem um Estado árabe.
O que estamos vendo no Iraque hoje é esse diálogo horizontal, entre árabes xiitas, curdos e árabes sunitas -comunidades que nunca foram autorizadas a forjar seu próprio contrato social- para que não tenham que ser governadas de cima para baixo.
Se os árabes xiitas, os árabes sunitas e os curdos iraquianos conseguirem forjar seu próprio contrato social, a democracia será possível nessa parte do mundo. Se não conseguirem, então o futuro será feito de reis e ditadores a perder de vista. E, como foram décadas desse tipo de política que geraram as patologias que resultaram no 11 de Setembro, isso seria extremamente lamentável.
Nosso trabalho era fazer uma coisa certa: criar um ambiente de segurança, para que os iraquianos pudessem ter um diálogo horizontal razoavelmente racional e pacífico, o que é difícil, em vista do legado de medo de Saddam.
Fracassamos em grande medida porque Rumsfeld, que foi avisado do contrário, se negou a enviar tropas em número suficiente. Rumsfeld tomou essa decisão porque -a julgar pela história da Guerra do Iraque escrita por Michael Gordon e Bernard Trainor, "Cobra 2"- estava mais interessado em transformar o Pentágono do que em transformar o Iraque.
Ele nunca se dispôs a dedicar os recursos militares sem precedentes que seriam necessários para dar conta da missão iraquiana, também sem precedentes. Bush, Condi Rice e Dick Cheney embarcaram nessa viagem com ele.
Tentaram fazer história pagando pouco. Mas não se pode querer alcançar os fins sem se dispor a desembolsar os meios. Isso é matéria básica da disciplina da teoria estratégica, e ignorá-lo não é um simples "erro tático".

Tradução de Clara Allain

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