São Paulo, domingo, 08 de maio de 2005

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O FIM DO NAZISMO

Sucesso na Alemanha, historiador diz que Hitler criou ampla rede social financiada por pilhagem e escravidão

Bem-estar nazista seduziu alemães, diz livro

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

Passados 60 anos do fim da Segunda Guerra na Europa, cabe finalmente aos alemães contar a história do seu ponto de vista. Na vanguarda dessa iniciativa está Götz Aly, autor de "Hitlers Volksstaat" (o Estado hitlerista do povo), que ousa contrariar um confortável senso comum na Alemanha segundo o qual os alemães também foram vítimas de Hitler. Apesar disso -e das mais de mil notas de rodapé-, o livro se tornou um sucesso no país.
Para Aly, a maioria dos alemães foi conivente com as atrocidades hitleristas sobretudo porque havia um monumental sistema de compensação, um "Estado de Bem-Estar Social" nazista.
Rompe-se assim um tabu que, pode-se dizer, estabeleceu-se no primeiro minuto após a rendição incondicional dos alemães.
Aos Aliados ocidentais não interessava que surgisse, dos escombros de Berlim, uma poderosa Alemanha unificada e, pior, movida a nacionalismo. "Era provocar os fados, soltar-se uma Alemanha unida e neutra, tão pouco tempo após a guerra", segundo avalia Henry Kissinger em "Diplomacia".
Uma das coisas que poderiam "provocar os fados" era justamente produzir uma historiografia do nazismo que revelasse as atrocidades nazistas e a extensão do envolvimento dos alemães com o regime que os governou por 12 anos.
Por essa razão, um historiador do porte de Raul Hilberg, o pai dos estudos do Holocausto, teve enorme dificuldade, na década de 50, para conseguir publicar o seu hoje clássico "A Destruição dos Judeus da Europa". Por essa razão também ganhou status de verdade incontestável o poder "hipnotizador" do "monstro" hitlerista em relação aos alemães. Tal rótulo dispensou por muitos anos a reflexão séria sobre o fenômeno nazista e tinha ainda a vantagem de inocentar os alemães.
De lá para cá, a ocidentalização da Alemanha abriu caminho para que os historiadores afinal pudessem especular mais amplamente sobre as razões do nazismo, sem que isso representasse um risco político e diplomático. A novidade, agora, é que são os alemães que estão na dianteira desse trabalho, e as teses de Aly aparecem como realmente inovadoras.
Sua idéia é que o nazismo se sustentou na Alemanha em grande medida porque financiou uma estupenda malha de proteção social com os bens pilhados das nações que invadiu e com o uso da mão-de-obra escrava dos "seres inferiores" internados em campos de concentração.
A história mostra, porém, que um Estado como o nazista não poderia subsistir sem uma constante expansão física. O totalitarismo, cujo centro é a mentira, só se sustenta dentro de um projeto de conquista do mundo, uma vez que tudo aquilo que estiver fora de suas fronteiras ideológicas é naturalmente uma ameaça à sua existência.
Já seu modelo econômico repetiu o da Roma Antiga, que se valia de mão-de-obra escrava e entrou em decadência a partir do momento em que as conquistas territoriais que garantiam essa mão-de-obra estacaram. No caso do Reich alemão, as derrotas a partir de 1943 implodiram o pilar da economia do país -que, ademais, passou a centrar seus já escassos recursos na aceleração do extermínio dos judeus.
Aly argumenta que aos alemães não interessava saber de onde vinha nem de que maneira era obtida a riqueza que sustentava seu bem-estar, porque, afinal, o Terceiro Reich não só havia sido o responsável pela superação da imensa crise posterior à Primeira Guerra como também recuperara a auto-estima de seus antes humilhados súditos.
Esse postulado sugere que os alemães foram cúmplices, e não vítimas, do regime assassino de Hitler -eis uma das novidades importantes do livro de Aly.
Até agora, uns poucos estudiosos haviam se debruçado sobre a responsabilidade coletiva dos alemães -o mais estridente deles, Daniel Jonah Goldhagen ("Os Carrascos Voluntários de Hitler"), de Harvard, sustenta a tese de que a Alemanha criou o nazismo por estar tomada, até as entranhas, de anti-semitismo eliminacionista, tese devidamente esculhambada por Raul Hilberg e outros especialistas. O trunfo de Aly é mostrar que os alemães aceitaram o regime menos por sua inclinação anti-semita e mais porque ele oferecia o sonho de uma hiperpotência paternal.
Uma parte dessa estrutura subsiste na Alemanha atual e, como Aly disse à revista "Der Spiegel", nenhum político alemão pode defender abertamente seu desmonte sem que isso signifique perda substancial de votos. Ainda hoje, portanto, parte dos alemães não quer saber de que maneira o Estado manterá o imenso guarda-chuva social do país. Importa apenas que ele continue aberto.

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