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São Paulo, domingo, 08 de junho de 2003

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ARTIGO

Passado traçou mentalidade política única

Leia a seguir a continuação do artigo de Jacques Derrida e de Jürgen Habermas.

O apaziguamento das oposições de classe sob o Estado social e a autodelimitação da soberania estatal no quadro da União Européia são apenas os exemplos mais recentes. No terceiro quarto do século 20, a Europa viveu, do lado de cá da Cortina de Ferro, sua "era dourada", segundo as palavras de Eric Hobsbawm. Desde então, os traços de uma mentalidade política comum se tornaram reconhecíveis, de sorte que é frequente os outros perceberem em nós antes o europeu do que o alemão ou o francês, e isso não apenas em Hong Kong, mas até em Tel Aviv. É realmente verdade: nas sociedades européias, a secularização progrediu relativamente bem. Aqui os cidadãos observam as transgressões dos limites entre política e religião antes de tudo com suspeita. Os europeus possuem uma confiança relativamente grande nas operações de organização e nas capacidades de controle do Estado, ao passo que são céticos em relação à capacidade de realização do mercado. Eles possuem uma sensibilidade acentuada para a "dialética do esclarecimento"; não nutrem expectativas otimistas infrangíveis em face dos progressos técnicos. Têm preferências pelas garantias de seguridade do Estado de Bem-Estar Social e pelas regulações solidárias. O limiar da tolerância para com o exercício de violência contra as pessoas é relativamente baixo. O desejo de uma ordem internacional multilateral e juridicamente regulada se vincula à esperança de uma efetiva política interna mundial no quadro de uma ONU reformada.
A constelação que permitiu aos europeus ocidentais favorecidos desenvolver uma tal mentalidade nas sombras da Guerra Fria se desintegrou desde 1989-90. Mas o 15 de fevereiro mostra que a própria mentalidade sobreviveu a seu contexto de origem. Isso explica também por que a "velha Europa" se vê desafiada pela política hegemônica enérgica da superpotência aliada. E por que tantos na Europa que saúdam a queda de Saddam como libertação rejeitam o caráter contrário ao direito internacional da invasão unilateral, preventiva, justificada de maneira tão confusa quanto insuficiente. Porém quão estável é essa mentalidade? Ela tem raízes em experiências históricas e tradições de maior profundidade?
Hoje nós sabemos que muitas tradições políticas que reclamam autoridade na ilusão de sua naturalidade foram "inventadas". Em contraposição, uma identidade européia, que nasceria à luz da esfera pública, teria desde o começo algo de construído. Mas somente algo construído a partir do mero arbítrio traria a mácula da arbitrariedade. A vontade ética e política que se faz valer na hermenêutica dos processos de auto-entendimento não é arbítrio. A distinção entre o legado que nós queremos assumir e o que queremos rejeitar requer tanta cautela quanto decisão a respeito da versão em que nós nos apropriamos dele. Experiências históricas são candidatas somente para uma apropriação consciente, sem a qual elas não alcançariam uma força capaz de formar a identidade. Para concluir, algumas rubricas sobre esses "candidatos", à luz dos quais a mentalidade européia poderia obter um perfil mais nítido.

Raízes históricas
Na Europa moderna, aquém e além dos Pirineus, ao norte e ao sul dos Alpes, a oeste e a leste do Reno, a relação entre Estado e igreja se desenvolveu de maneira diversa. A neutralidade do poder estatal quanto às visões de mundo assumiu em diversos países europeus uma figura jurídica diferente em cada caso. Mas, no interior da sociedade civil, a religião acabou ocupando em toda parte uma posição não-política análoga. Mesmo que se possa lamentar essa privatização social da fé sob outros aspectos, ela tem uma consequência desejável para a cultura política. Em nossas longitudes, é difícil imaginar um presidente que começa suas atividades diárias com uma oração pública e vincula suas decisões políticas repletas de consequências a uma missão divina.
A emancipação da sociedade civil da tutela de um regime absolutista não esteve em toda parte da Europa entrelaçada com a tomada de posse e com a transformação democrática do Estado administrativo. Mas a irradiação ideal da Revolução Francesa pela Europa inteira explica, entre outras coisas, por que a política assumiu positivamente uma dupla forma tanto como meio de segurança da liberdade quanto como poder de organização. Em contrapartida, a imposição do capitalismo esteve ligada a fortes oposições de classes. Essa lembrança impede uma apreciação igualmente imparcial do mercado. A distinta avaliação de política e mercado pode fortalecer os europeus em sua confiança no poder de configuração civilizadora de um Estado do qual eles esperam também a correção das "falhas do mercado".
O sistema partidário proveniente da Revolução Francesa foi frequentemente copiado. Mas só na Europa ele serve também a uma concorrência ideológica que submete as consequências sociopatológicas da modernização capitalista a uma avaliação política contínua. Isso estimula a sensibilidade dos cidadãos para os paradoxos do progresso. No conflito das interpretações conservadoras, liberais e socialistas, trata-se de pesar dois aspectos: as perdas que ocorrem com a desintegração das formas de vida tradicionais e protetoras superam os ganhos de um progresso quimérico? Ou os ganhos que hoje os processos de destruição criativa colocam em perspectiva para o amanhã superam as dores dos que perdem com a modernização?
Na Europa, as diferenças de classe, com efeitos duradouros, foram experienciadas pelos atingidos como um destino que somente pôde ser evitado mediante uma ação coletiva. Desse modo, no contexto dos movimentos operários e das tradições sociais cristãs, um ethos solidarista da luta por "mais justiça social", objetivando um sustento simétrico, se impôs contra um ethos individualista da justiça por produtividade que aceita desigualdades sociais crassas.
A Europa hodierna foi marcada pelas experiências dos regimes totalitários do século 20 e do holocausto, a perseguição e aniquilação dos judeus europeus, no qual o regime nazista emaranhou também as sociedades dos países conquistados. As discussões e autocríticas acerca desse passado acabaram recordando os fundamentos morais da política. Uma elevada sensibilidade para as violações da integridade pessoal e da corporal se reflete, entre outras coisas, no fato de o Conselho Europeu e a União Européia terem colocado como condição de ingresso a renúncia à pena de morte.
Um passado belicista enredou outrora todas as nações européias em confrontos sangrentos. Após a Segunda Guerra Mundial, tirou-se das experiências contrárias de mobilização militar e mobilização intelectual a consequência de desenvolver novas formas supranacionais de cooperação. A história bem-sucedida da União Européia fortaleceu os europeus na convicção de que a domesticação do exercício do poder estatal requer também no plano global uma restrição mútua dos espaços soberanos de ação.
Cada uma das grandes nações européias vivenciou o florescimento do poder imperial e, o que é mais importante em nosso contexto, teve de assimilar a experiência da perda de um império. Essa experiência da queda se liga em muitos casos à perda de impérios coloniais. Com a distância cada vez maior da dominação imperial e da história colonial, as potências européias receberam também a chance de tomar uma distância reflexiva de si próprias. Assim elas puderam aprender a perceber a si mesmas, da perspectiva dos vencidos, no papel duvidoso dos vitoriosos que teriam de prestar contas pela forma de uma modernização autoritária e desarraigadora. Isso poderia ter nutrido a recusa do eurocentrismo e estimulado a esperança kantiana de um política interna mundial.


Texto publicado originalmente nos jornais "Frankfurter Allgemeine" e "Libération" em dia 31 de março.

Tradução de Luiz Repa


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