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São Paulo, domingo, 08 de junho de 2003

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Distantes no passado, intelectuais se aproximam

DA REDAÇÃO

É muito estranho ver em um mesmo texto as assinaturas dos filósofos Jürgen Habermas e Jacques Derrida, tais como aparecem no manifesto político que a Folha publica hoje. A oposição da Europa ao domínio dos Estados Unidos, a "identidade européia" e mesmo o presente debate sobre a Constituição da União Européia estão na base dessa coalizão franco-alemã, desse texto assinado pelos dois filósofos. Mas o que os separa e o que os uniu numa co-autoria tida como "sensacional" nos meios intelectuais europeus?
Habermas e Derrida julgam-se politicamente à esquerda. Mas seus críticos à esquerda consideram as idéias de Habermas hoje liberais demais e as de Derrida por demais relativistas e desdenhosas da razão para serem de esquerda.
"Não há nada de misterioso sobre a minha relação com Derrida. Desde 1984, já nos encontramos algumas vezes, em Chicago, Nova York, Paris e Frankfurt. Não é segredo que, politicamente, estamos do mesmo lado há muitos anos. Foi natural, portanto, que eu escolhesse Derrida como meu correspondente na França quando comecei a ação conjunta sobre o tema da "identidade européia", um assunto que se tornou especialmente quente depois da guerra no Iraque", disse Habermas à Folha a respeito da colaboração com seu colega francês.
Habermas explicou ainda que, a seu convite, vários intelectuais europeus também escreveram manifestos nos jornais de seus países -caso de pensadores como Umberto Eco, Richard Rorty, Fernando Savater e Gianni Vattimo.
Derrida, que não está bem de saúde, segundo Habermas, acabou por assinar, em sinal de "concordância irrestrita", o texto que o alemão propusera e que foi publicado nos jornais "Frankfurter Allgemeine" e "Libération" em 31 de maio deste ano, no mesmo dia em que os demais intelectuais dessa "rede européia" publicaram artigos em seus países.
Ainda assim, a estranheza permanece. Habermas e Derrida são os representantes maiores das duas principais e algo opostas correntes filosóficas européias.
Habermas é o herdeiro da tradição de pensamento crítico alemão, em especial de Karl Marx, que foi relida e adaptada pela Escola de Frankfurt, que a temperou com um pouco de Weber, Lukács, Freud e Heidegger e que foi por fim confrontada e em parte mixada com o pensamento de linhagem pragmatista e linguística dos pensadores anglo-saxões.
O projeto intelectual de Habermas busca desenvolver a "crítica" em dois sentidos: uma teoria social que procura encontrar a validade de suas bases -examinar as condições em que é possível tal filosofia- e uma teoria que permita desnudar a injustiça.
As bases dessa teoria, para Habermas, estão na compreensão da "ação comunicativa", dos pressupostos de uma "comunidade idealmente livre" e das regras que permitem às pessoas chegarem a um entendimento racional.
A busca do consenso por meio do confronto de argumentos racionais daria perspectiva de continuidade à utopia iluminista, à idéia de razão como meio de libertação, embora um sistema político, midiático e tecnológico subordinado a interesses econômicos ainda mine as bases dessa "comunidade idealmente livre".
Derrida ficou conhecido por conceitos como "desconstrução" e pela crítica do "sistema logocêntrico, fonocêntrico e etnocêntrico" da cultura ocidental. Foi banalizado por meio da idéia de que a tradição filosófica européia e as idéias de verdade e razão seriam estratégias da uma civilização repressiva e etnocêntrica.
O filósofo procurou fazer uma espécie de "revisão" da história do pensamento ocidental, das suas idéias de verdade e das idéias de verdade que foram marginalizadas pelo pensamento de tradição européia. Mais: seu projeto é uma "desconstrução" da razão: questionar a idéia de que se pode definir significados claros e estáveis para o que se pensa, de que a verdade e a objetividade teriam significados fixos, de que há conhecimento desinteressado.
"Não há nenhum fora-do-texto" para Derrida, há apenas o trabalho da interpretação permanente, o esforço em mostrar que, em todo texto, o seu contrário pode estar sendo dito; que a razão e a verdade são um mito ocidental.
Em entrevista à Folha, em 1995, Derrida disse, sobre suas posições políticas: "Mas minhas opções são conhecidas: são opções de esquerda. Em geral, tento falar ou agir politicamente apenas quando tenho algo mais agudo a dizer: algo "inoportuno". Isto é, não se juntar simplesmente à maioria, ao que é conveniente. Trata-se de deslocar o código político, falar uma linguagem política que não seja imediatamente traduzível pelo código dominante".
Porém fez questão de enfatizar: mas não apenas "politizar de outra maneira o discurso". "As questões políticas que procuro elaborar dizem respeito à nacionalidade, à cidadania, ao direito de asilo, ao direito internacional, às instituições internacionais etc."
(CLAUDIA STRAUCH E VINICIUS TORRES FREIRE)


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