São Paulo, sexta-feira, 08 de outubro de 2004

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VATICANO

Em novo livro, João Paulo 2º sugere que o comunismo "criou oportunidades para o bem'; analistas se dizem perplexos

Comunismo foi "mal necessário", diz papa

TONY BARBER
DO "FINANCIAL TIMES", EM ROMA

O papa João Paulo 2º, que sofreu a opressão nazista e comunista em seu país natal, a Polônia, deixou espantados seus admiradores e adversários ao sugerir, em um livro que acaba de lançar, que o comunismo pode ter sido "um mal necessário" do século 20.
A observação está contida em "Memória e Identidade", um livro baseado em conversas particulares que o papa, hoje com 84 anos, teve com dois filósofos poloneses no verão de 1993, quatro anos após a queda do comunismo na Europa oriental.
João Paulo 2º foi um dos mais severos críticos das ideologias totalitárias do século passado. Sua condenação do comunismo serviu de inspiração aos poloneses quando criaram o sindicato Solidariedade, em 1980, dois anos depois de ele ter se tornado papa.
Em seu livro, trechos do qual foram divulgados nesta semana por sua editora italiana, a Rizzoli, João Paulo 2º recorda sua reação quando a Polônia e outros países do Leste Europeu caíram sob o domínio comunista soviético, após a Segunda Guerra Mundial.
"Ficou claro para mim, de repente, que o comunismo duraria muito mais tempo do que durara o nazismo. Quanto tempo? Era difícil prever. O que éramos levados a crer era que esse mal era, em algum sentido, necessário para o mundo e para a humanidade. De fato, pode acontecer que, sob determinadas situações concretas da existência humana, o mal revele ser de alguma maneira útil -útil na medida em que cria oportunidades para o bem."

"Perplexidade"
O filósofo e historiador Giovanni Reale, da Universidade Católica do Sagrado Coração, em Milão, disse que as reflexões do papa "suscitaram enorme surpresa e perplexidade".
Mesmo assim, em artigo publicado na edição de ontem do maior jornal econômico italiano, "Il Sole 24 Ore", Reale disse que o papa, ao fazer essa declaração, pensava no comunismo não como evento da história, mas como uma força que foi derrotada em nível filosófico e teológico.
O líder do partido da Refundação Comunista, Fausto Bertinotti, rejeitou a descrição feita pelo papa do comunismo como um mal, dizendo que João Paulo 2º evoca "uma explicação metafísica da história, algo compreensível dado o púlpito de onde ele veio".
Em seu livro, João Paulo 2º sugere que compartilha da visão do poeta romântico alemão Goethe sobre a natureza do mal. Ele cita um trecho da peça "Fausto" em que Mefistófeles, o demônio, se descreve como "parte daquele poder que sempre quer fazer o mal e sempre faz o bem".
O papa também recordou a era em que a Polônia esteve sob ocupação nazista e quando ele estudou em segredo para tornar-se sacerdote. "O Senhor Deus permitiu que o nazismo existisse por 12 anos, e após 12 anos esse sistema caiu. Percebe-se que esse foi o limite imposto pela divina Providência àquele tipo de loucura."
Autoridades do Vaticano disseram que as conversas em que o livro se baseia foram gravadas em 1993 e foram apenas levemente editadas pelo papa.
O livro deve ser publicado no início do próximo ano, e, a julgar pelas publicações anteriores de João Paulo 2º, tem todas as chances de se tornar best-seller internacional. Os royalties dos livros do papa são doados a obras beneficentes.


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