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São Paulo, quarta-feira, 09 de abril de 2003

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ONU

Para chefe dos inspetores da organização, destruição de armas químicas no Iraque foi relegada a "quarto posto"

"EUA se impacientaram", diz Blix

ERNESTO EKAIZER
DO "EL PAÍS", EM ESTOCOLMO

Hans Blix está na sala de seu apartamento de classe média no centro da capital sueca. O advogado de 75 anos, ex-funcionário do Ministério do Exterior da Suécia, veio visitar a família e realizar exames médicos. Pretende voltar o mais rápido possível a Nova York, para o cargo que exerce desde 2000, quando foi nomeado presidente da Comissão de Vigilância, Verificação e Inspeção das Nações Unidas (Unmovic).
Homem de maneiras suaves, Blix -casado e pai de dois filhos que se pronunciaram contra a guerra- assinala que o objetivo de destruir as supostas armas de destruição em massa "foi relegado ao quarto posto". "O governo americano se impacientou quando o Iraque começou a colaborar, como vínhamos pedindo", diz, evocando os primeiros dias de março, quando americanos e britânicos decidiram que não havia margem para a tarefa dos inspetores. Leia o diálogo que manteve na segunda-feira com o "El País".
 

Pergunta - O sr. se lembra do assunto das armas de destruição em massa que o Iraque supostamente possuía?
Hans Blix -
Creio (sorri) que, no momento, encontrar armas de destruição em massa foi relegado, diria, ao quarto posto entre os motivos para que os EUA e o Reino Unido tenham ido à guerra. Hoje, a mudança do regime ditatorial de Saddam Hussein se tornou o principal objetivo.

Pergunta - Até agora não foram localizados rastros de armas químicas e biológicas. As equipes especiais do Exército americano dizem que isso se deve ao fato de que elas estariam armazenadas em Bagdá. O sr. acredita nisso?
Blix -
Tanto os EUA quanto o Reino Unido sempre nos disseram que o Iraque possuía essas armas. Nunca aceitamos essas alegações como fato comprovado. Pois nisso consistia o nosso trabalho. Lamentavelmente, ambos os governos se mostraram muito impacientes, nos primeiros dias de março. E não deixaram concluir a tarefa. Alguns meses mais de trabalho nos teriam permitido saber se o governo iraquiano dispunha de armas desse tipo. Tenho muita curiosidade em saber se de fato as encontrarão. Não creio que ninguém se interesse por isso mais que eu.

Pergunta - A informação que os serviços de inteligência forneceram ao sr. para que suas equipes conduzissem as investigações se referia apenas a Bagdá?
Blix -
Não, os serviços de inteligência americanos nos forneceram informações sobre depósitos de armas de destruição em massa em vários pontos do país. Como se sabe, não localizamos nada. Visitamos os lugares. E nada.

Pergunta - Em sua apresentação à ONU em 5 de fevereiro passado, o secretário de Estado americano, Colin Powell, insistiu em que existiam laboratórios móveis para a fabricação dessas armas. A suposição é a de que estariam disseminadas em diferentes regiões do Iraque.
Blix -
Seria lógico. Talvez já devessem ter encontrado algum deles, se existissem.

Pergunta - O sr. fez todo o possível para determinar a existência dessas armas, em suas inspeções?
Blix -
Tenho a consciência tranquila. Lamento não ter tido os meses de que necessitava para confirmar se existiam ou não armas químicas e biológicas. Mas os americanos começaram a expressar impaciência nos primeiros dias de março. Parece que as temperaturas elevadas do Iraque chegavam a um ponto que tornava necessária a realização imediata de um ataque. Mas, quando perguntávamos sobre isso, respondiam que não, que podiam esperar mais. Em 27 de janeiro, quando denunciei ao Conselho de Segurança (CS) da ONU que o Iraque não colaborava como previsto na resolução 1.441 -de maneira imediata, completa e incondicional- , o governo americano, incluindo seus elementos mais belicosos, me aplaudiu. Foi paradoxal. Pois depois disso o Iraque começou a colaborar ativamente. E aí foram os americanos que passaram a me criticar.

Pergunta - Quando o sr. fala de conduta ativa, se refere apenas à destruição de uma parte dos mísseis Al Samoud?
Blix -
A destruição dos mísseis aconteceu em resposta ao meu ultimato. Refiro-me a mais coisas. Forneceram-nos nomes de muitos técnicos e cientistas que haviam participado do processo de destruição das armas químicas e biológicas, em 1991. Isso era fundamental. Porque, no começo, por exemplo, só nos deram amostras da terra onde supostamente o antraz teria sido enterrado. Mas é evidentemente difícil extrair condições examinando uma amostra de terra. Não era possível saber as quantidades de antraz que teriam sido enterradas.
Em conclusão, os iraquianos não haviam cumprido a exigência de nos fornecer os dados de que necessitávamos, de imediato, como constava da resolução, mas no final de janeiro começaram a nos fornecer, provavelmente devido à chegada de 200 mil soldados britânicos e americanos ao golfo Pérsico. Precisávamos de alguns meses para trabalhar com eles.

Pergunta - O governo Bush estava realmente interessado nas inspeções? O sr. não se sente usado, por assim dizer, quando surgem provas de que a invasão fora planejada com antecedência?
Blix -
Bem, há indícios de que, de fato, a guerra foi planejada com muita antecedência. Isso me faz duvidar, às vezes, quanto às atitudes que eles exibiam diante das inspeções. Mas recordo que Bush nos convocou à Casa Branca em outubro de 2002 -Mohammed El Baradei, o diretor da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), e eu. Bush tinha com ele o vice-presidente Dick Cheney, Colin Powell, Condoleezza Rice e Paul Wolfowitz. Disseram-nos que apoiavam o processo de inspeção que começava. É certo que eu sabia que dentro do governo Bush havia pessoas céticas e que já trabalhavam com a idéia de mudar o regime iraquiano. Mas naquela época eu acreditava que havia espaço para a atuação dos inspetores.

Pergunta - Quando começou a ter sensação de que não havia muito mais a fazer?
Blix -
Acho que quando os iraquianos começaram a trabalhar mais ativamente no cumprimento da resolução. Ao perceber a impaciência dos americanos, tive a sensação de que a situação se esgotava. E quando, em 7 de março, os britânicos disseram que estavam dispostos a prolongar o prazo de ultimato por apenas quatro ou cinco dias, soube que não havia mais jeito.

Pergunta - Crê que haja armas de destruição em massa no Iraque?
Blix -
Sou o primeiro interessado em saber. Creio que os americanos começaram a guerra acreditando que existissem. Agora, acho que crêem menos nessa possibilidade. Mas não sei, quando percebemos as coisas que foram tentadas para demonstrar que os iraquianos tinham armas nucleares, como o contrato fantasma com o Níger, muitas perguntas nos ocorrem. Quem seria capaz de semelhante falsificação? Por isso, fomos sempre muito cautelosos.

Pergunta - Para o sr., qual o sentido dessa guerra?
Blix -
Não sei, há quem diga que se trata de uma guerra por petróleo. Mas creio que o fundamental seja o 11 de setembro de 2001. Os atentados mudaram toda a perspectiva. A idéia de uma guerra contra a proliferação de armas de destruição em massa estava no ar há algum tempo. Desde pelo menos a crise dos mísseis de Cuba nos anos 60. O tema claro daquele episódio foi deter a proliferação.
E pode-se recordar também o ataque de Israel contra um reator nuclear iraquiano em 81. Depois tivemos os ataques a um complexo químico na Líbia e, mais recentemente, ataques ordenados pelo governo Clinton contra o Sudão.
Mas não resta dúvida de que o 11 de setembro converteu o que poderiam ser apenas incursões ocasionais em um objetivo central. Isso aconteceu no Afeganistão. Então surgiu a teoria do eixo do mal. Agora é a vez do Iraque.

Pergunta - Mas o que o sr. denomina de combate à proliferação enviou o sinal oposto. O Iraque não tinha armas nucleares e foi atacado. Se um país tem esse tipo de armas, se torna mais difícil atacá-lo, não?
Blix -
Os EUA sustentam que se trata de mandar, com a guerra do Iraque, um sinal aos demais países para que se mantenham longe das armas de destruição em massa. Temos a declaração divulgada pelo governo da Coréia do Sul no último domingo de que, se você deixa que os inspetores entrem, como aconteceu no Iraque, termina atacado. O problema é importante. Se um país tem a percepção de que sua segurança está garantida, não tem necessidade de pensar em armas de destruição em massa. Essa garantia de segurança é a primeira linha de defesa contra a proliferação de armas de destruição em massa.

Pergunta - O ex-ministro Robin Cook, ao anunciar sua demissão ao Parlamento britânico, disse que o Iraque não dispunha de armas de destruição em quantidade que representasse ameaça mundial.
Blix -
Toda a idéia de controle da proliferação de armas de destruição em massa, desde o protocolo de Genebra em 1925, é a proibição de seu uso. Depois da Segunda Guerra, adotamos o conceito de evitar a posse. E foi assim que surgiu a proposta de um sistema de inspeções. Em 1991, diante da pressão da guerra, o Iraque declarou que tinha armas químicas e biológicas. E por isso foi instalado o processo de inspeção. Mas é igualmente certo que alguns de seus vizinhos, como o Irã e a Síria, tenham dito várias vezes nos últimos meses que não se sentiam ameaçados.

Pergunta - O que acontece se não aparecerem armas de destruição em massa?
Blix -
Bom, o povo iraquiano foi libertado de Saddam Hussein e da possibilidade de que no futuro haja armas de destruição em massa em seu país. É um preço muito alto em vidas humanas e destruição material. Poderíamos ter controlado a suposta ameaça através das inspeções. Caso isso tivesse acontecido, o regime de Saddam se manteria. Mas uma guerra representa mais riscos.


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