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ONU
Para chefe dos inspetores da organização, destruição de armas químicas no Iraque foi relegada a "quarto posto"
"EUA se impacientaram", diz Blix
ERNESTO EKAIZER
DO "EL PAÍS", EM ESTOCOLMO
Hans Blix está na sala de seu
apartamento de classe média no
centro da capital sueca. O advogado de 75 anos, ex-funcionário do
Ministério do Exterior da Suécia,
veio visitar a família e realizar exames médicos. Pretende voltar o
mais rápido possível a Nova York,
para o cargo que exerce desde
2000, quando foi nomeado presidente da Comissão de Vigilância,
Verificação e Inspeção das Nações Unidas (Unmovic).
Homem de maneiras suaves,
Blix -casado e pai de dois filhos
que se pronunciaram contra a
guerra- assinala que o objetivo
de destruir as supostas armas de
destruição em massa "foi relegado ao quarto posto". "O governo
americano se impacientou quando o Iraque começou a colaborar,
como vínhamos pedindo", diz,
evocando os primeiros dias de
março, quando americanos e britânicos decidiram que não havia
margem para a tarefa dos inspetores. Leia o diálogo que manteve na
segunda-feira com o "El País".
Pergunta - O sr. se lembra do assunto das armas de destruição em
massa que o Iraque supostamente
possuía?
Hans Blix - Creio (sorri) que, no
momento, encontrar armas de
destruição em massa foi relegado,
diria, ao quarto posto entre os
motivos para que os EUA e o Reino Unido tenham ido à guerra.
Hoje, a mudança do regime ditatorial de Saddam Hussein se tornou o principal objetivo.
Pergunta - Até agora não foram
localizados rastros de armas químicas e biológicas. As equipes especiais do Exército americano dizem
que isso se deve ao fato de que elas
estariam armazenadas em Bagdá.
O sr. acredita nisso?
Blix - Tanto os EUA quanto o
Reino Unido sempre nos disseram que o Iraque possuía essas armas. Nunca aceitamos essas alegações como fato comprovado.
Pois nisso consistia o nosso trabalho. Lamentavelmente, ambos os
governos se mostraram muito
impacientes, nos primeiros dias
de março. E não deixaram concluir a tarefa. Alguns meses mais
de trabalho nos teriam permitido
saber se o governo iraquiano dispunha de armas desse tipo. Tenho
muita curiosidade em saber se de
fato as encontrarão. Não creio que
ninguém se interesse por isso
mais que eu.
Pergunta - A informação que os
serviços de inteligência forneceram ao sr. para que suas equipes
conduzissem as investigações se
referia apenas a Bagdá?
Blix - Não, os serviços de inteligência americanos nos forneceram informações sobre depósitos
de armas de destruição em massa
em vários pontos do país. Como
se sabe, não localizamos nada. Visitamos os lugares. E nada.
Pergunta - Em sua apresentação
à ONU em 5 de fevereiro passado, o
secretário de Estado americano,
Colin Powell, insistiu em que existiam laboratórios móveis para a fabricação dessas armas. A suposição
é a de que estariam disseminadas
em diferentes regiões do Iraque.
Blix - Seria lógico. Talvez já devessem ter encontrado algum deles, se existissem.
Pergunta - O sr. fez todo o possível para determinar a existência
dessas armas, em suas inspeções?
Blix - Tenho a consciência tranquila. Lamento não ter tido os
meses de que necessitava para
confirmar se existiam ou não armas químicas e biológicas. Mas os
americanos começaram a expressar impaciência nos primeiros
dias de março. Parece que as temperaturas elevadas do Iraque chegavam a um ponto que tornava
necessária a realização imediata
de um ataque. Mas, quando perguntávamos sobre isso, respondiam que não, que podiam esperar mais. Em 27 de janeiro, quando denunciei ao Conselho de Segurança (CS) da ONU que o Iraque não colaborava como previsto na resolução 1.441 -de maneira imediata, completa e incondicional- , o governo americano,
incluindo seus elementos mais
belicosos, me aplaudiu. Foi paradoxal. Pois depois disso o Iraque
começou a colaborar ativamente.
E aí foram os americanos que passaram a me criticar.
Pergunta - Quando o sr. fala de
conduta ativa, se refere apenas à
destruição de uma parte dos mísseis Al Samoud?
Blix - A destruição dos mísseis
aconteceu em resposta ao meu ultimato. Refiro-me a mais coisas.
Forneceram-nos nomes de muitos técnicos e cientistas que haviam participado do processo de
destruição das armas químicas e
biológicas, em 1991. Isso era fundamental. Porque, no começo,
por exemplo, só nos deram amostras da terra onde supostamente o
antraz teria sido enterrado. Mas é
evidentemente difícil extrair condições examinando uma amostra
de terra. Não era possível saber as
quantidades de antraz que teriam
sido enterradas.
Em conclusão, os iraquianos
não haviam cumprido a exigência
de nos fornecer os dados de que
necessitávamos, de imediato, como constava da resolução, mas no
final de janeiro começaram a nos
fornecer, provavelmente devido à
chegada de 200 mil soldados britânicos e americanos ao golfo Pérsico. Precisávamos de alguns meses para trabalhar com eles.
Pergunta - O governo Bush estava realmente interessado nas inspeções? O sr. não se sente usado,
por assim dizer, quando surgem
provas de que a invasão fora planejada com antecedência?
Blix - Bem, há indícios de que, de
fato, a guerra foi planejada com
muita antecedência. Isso
me faz duvidar, às vezes, quanto
às atitudes que eles exibiam diante das inspeções. Mas recordo que
Bush nos convocou à Casa Branca
em outubro de 2002 -Mohammed El Baradei, o diretor da
Agência Internacional de Energia
Atômica (AIEA), e eu. Bush tinha
com ele o vice-presidente Dick
Cheney, Colin Powell, Condoleezza Rice e Paul Wolfowitz. Disseram-nos que apoiavam o processo de inspeção que começava. É
certo que eu sabia que dentro do
governo Bush havia pessoas céticas e que já trabalhavam com a
idéia de mudar o regime iraquiano. Mas naquela época eu acreditava que havia espaço para a atuação dos inspetores.
Pergunta - Quando começou a ter
sensação de que não havia muito
mais a fazer?
Blix - Acho que quando os iraquianos começaram a trabalhar
mais ativamente no cumprimento da resolução. Ao perceber a impaciência dos americanos, tive a
sensação de que a situação se esgotava. E quando, em 7 de março,
os britânicos disseram que estavam dispostos a prolongar o prazo de ultimato por apenas quatro
ou cinco dias, soube que não havia mais jeito.
Pergunta - Crê que haja armas de
destruição em massa no Iraque?
Blix - Sou o primeiro interessado
em saber. Creio que os americanos começaram a guerra acreditando que existissem. Agora, acho
que crêem menos nessa possibilidade. Mas não sei, quando percebemos as coisas que foram tentadas para demonstrar que os iraquianos tinham armas nucleares,
como o contrato fantasma com o
Níger, muitas perguntas nos
ocorrem. Quem seria capaz de semelhante falsificação? Por isso,
fomos sempre muito cautelosos.
Pergunta - Para o sr., qual o sentido dessa guerra?
Blix - Não sei, há quem diga que
se trata de uma guerra por petróleo. Mas creio que o fundamental
seja o 11 de setembro de 2001. Os
atentados mudaram toda a perspectiva. A idéia de uma guerra
contra a proliferação de armas de
destruição em massa estava no ar
há algum tempo. Desde pelo menos a crise dos mísseis de Cuba
nos anos 60. O tema claro daquele
episódio foi deter a proliferação.
E pode-se recordar também o
ataque de Israel contra um reator
nuclear iraquiano em 81. Depois
tivemos os ataques a um complexo químico na Líbia e, mais recentemente, ataques ordenados pelo
governo Clinton contra o Sudão.
Mas não resta dúvida de que o
11 de setembro converteu o que
poderiam ser apenas incursões
ocasionais em um objetivo central. Isso aconteceu no Afeganistão. Então surgiu a teoria do eixo
do mal. Agora é a vez do Iraque.
Pergunta - Mas o que o sr. denomina de combate à proliferação enviou o sinal oposto. O Iraque não tinha armas nucleares e foi atacado.
Se um país tem esse tipo de armas,
se torna mais difícil atacá-lo, não?
Blix - Os EUA sustentam que se
trata de mandar, com a guerra do
Iraque, um sinal aos demais países para que se mantenham longe
das armas de destruição em massa. Temos a declaração divulgada
pelo governo da Coréia do Sul no
último domingo de que, se você
deixa que os inspetores entrem,
como aconteceu no Iraque, termina atacado. O problema é importante. Se um país tem a percepção
de que sua segurança está garantida, não tem necessidade de pensar em armas de destruição em
massa. Essa garantia de segurança
é a primeira linha de defesa contra
a proliferação de armas de destruição em massa.
Pergunta - O ex-ministro Robin
Cook, ao anunciar sua demissão ao
Parlamento britânico, disse que o
Iraque não dispunha de armas de
destruição em quantidade que representasse ameaça mundial.
Blix - Toda a idéia de controle da
proliferação de armas de destruição em massa, desde o protocolo
de Genebra em 1925, é a proibição
de seu uso. Depois da Segunda
Guerra, adotamos o conceito de
evitar a posse. E foi assim que surgiu a proposta de um sistema de
inspeções. Em 1991, diante da
pressão da guerra, o Iraque declarou que tinha armas químicas e
biológicas. E por isso foi instalado
o processo de inspeção. Mas é
igualmente certo que alguns de
seus vizinhos, como o Irã e a Síria,
tenham dito várias vezes nos últimos meses que não se sentiam
ameaçados.
Pergunta - O que acontece se não
aparecerem armas de destruição
em massa?
Blix - Bom, o povo iraquiano foi
libertado de Saddam Hussein e da
possibilidade de que no futuro
haja armas de destruição em massa em seu país. É um preço muito
alto em vidas humanas e destruição material. Poderíamos ter controlado a suposta ameaça através
das inspeções. Caso isso tivesse
acontecido, o regime de Saddam
se manteria. Mas uma guerra representa mais riscos.
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