São Paulo, Terça-feira, 09 de Novembro de 1999
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ARTIGO
Há dez anos a história alemã começava a mudar

France Presse
A partir da esq., Helmut Kohl, Mikhail Gorbatchov e George Bush


HELMUT KOHL
especial para a Folha

Fui informado da queda do Muro de Berlim durante visita oficial à Polônia, dez anos atrás.
No início da noite de 9 de novembro, o premiê Tadeusz Mazowiecki convidou minha delegação para um banquete. Antes do início do jantar, a Chancelaria me telefonou de Bonn, dizendo que o presidente do distrito comunista de Berlim Oriental, num ato inesperado, anunciara novas normas, de vigência temporária, permitindo que cidadãos particulares viajassem para o lado ocidental.
As autorizações de passagem pelo Muro seriam concedidas a todos os requerentes, mesmo os que as solicitassem a curto prazo.
Isso foi o suficiente para que eu soubesse que a história alemã não tardaria a mudar, já que a retirada dos obstáculos significaria que o Muro poderia ser transposto por todos. Mesmo assim, num primeiro momento, não previ as espetaculares comemorações daquela noite em Berlim.
Durante toda a minha carreira política, nunca duvidei que a Alemanha fosse recuperar sua unidade em algum momento futuro. Mas jamais ousei sonhar que a reunificação dos dois lados pudesse se dar durante o meu mandato de chanceler (premiê).
A reunificação se tornou uma possibilidade real graças apenas a Mikhail Gorbatchov e suas políticas da perestroika e da glasnost. Sem Gorbatchov e sua singular coragem, os eventos que se sucederam na Europa no outono de 89 não teriam sido possíveis.
Isso porque, com a ascendência de Gorbatchov, cada vez mais pessoas na Alemanha Oriental foram criando coragem e deixando de temer seu regime repressor. Elas perceberam que a realidade da Alemanha Oriental não era, afinal, gravada em pedra imutável, e que seria possível alcançar as mudanças que vinham sendo reivindicadas havia tanto tempo pelos muitos corajosos dissidentes e defensores dos direitos civis presos atrás do Muro.
O engajamento destas pessoas contra as injustiças do regime comunista é, para mim, um dos melhores capítulos da história alemã.
A abertura das fronteiras da Hungria e o fato de cidadãos alemães-orientais terem pedido refúgio nas embaixadas alemãs de Praga e Varsóvia já haviam abalado muito o governo comunista.
Mas a queda do comunismo se tornou irreversível na noite de 9 de novembro, quando começaram a ruir o Muro e o arame farpado que não conseguiram dividir os alemães de maneira irrevogável, após décadas de amarga separação. Ingressáramos numa nova era. Daquele dia em diante a roda da história começou a girar mais rapidamente.
Quando voltei do banquete para assistir às notícias de Berlim na TV, decidi interromper a visita a Varsóvia. Não foi fácil convencer meus anfitriões de que, num momento histórico como aquele, o lugar do chanceler alemão só poderia ser em nossa velha capital, com a multidão em festa. Minha ânsia de voltar foi intensificada por algumas das cenas ocorridas na noite do dia seguinte.
Uma multidão de manifestantes de extrema esquerda conseguiu abafar o som do hino alemão cantado por pessoas que comemoravam a queda próxima do Muro. Eu estava decidido a mostrar que os extremistas não eram representativos da população de Berlim. Pelo contrário, a maioria das pessoas ansiava por unidade, justiça e liberdade para sua pátria.
Assim, tomei um avião até Berlim, mas, antes de me dirigir à multidão, recebi um telefonema de Mikhail Gorbatchov. O líder soviético me pediu que controlasse o entusiasmo público, para impedir que se transformasse em caos e derramamento de sangue. Ele havia sido informado de que a situação estaria se tornando incontrolável. Queria saber se era verdade que multidões enfurecidas estavam atacando instalações do Exército soviético.
Eu lhe assegurei que as informações que recebera estavam erradas. Gorbatchov acreditou em minha palavra. Contribuiu para isso o fato de que nos conhecêramos bem durante sua visita à Alemanha, em junho de 1989, e desenvolvêramos confiança mútua.
Apesar das divergências relativas à questão alemã, a paz, tanto para ele quanto para mim, não era uma mera palavra, e sim uma necessidade existencial e básica.
Mais tarde, Gorbatchov me contou que tinha sido intencionalmente mal informado por adversários da reforma que desejavam a intervenção de tropas soviéticas na Alemanha Oriental.
Até hoje sou grato a Gorbatchov por ter dado ouvidos não a esses agitadores, mas a meus argumentos. Confrontado com a opção entre deixar os tanques nos quartéis ou enviá-los à rua, ele optou pela paz e aceitou a nova realidade tão corajosamente traçada pela população da Alemanha Oriental.
A partir de 9 de novembro, o processo foi ganhando cada vez mais ímpeto. No prazo inacreditavelmente curto de apenas 11 meses, a reunificação alemã se transformou em realidade. Para mim, foi um sonho concretizado.
Apesar disso, senti dois compromissos fortes para o futuro. Um deles pode ser descrito pela imagem da unidade alemã e européia como dois lados da mesma moeda. Uma não pode existir sem a outra. Expressei o outro compromisso quando falei da necessidade de criar paisagens florescentes nos novos Estados orientais.
Ambos representaram tarefas grandes e árduas. Nos dez anos que passaram desde a queda do Muro, creio que essas metas foram alcançadas em sua essência, embora não em sua totalidade.
A Alemanha unificada está fortemente comprometida com a Europa. Com relação aos novos Estados alemães, tanto a transição para a democracia e a sociedade livre quanto as reformas estruturais empreendidas na economia têm tido êxito, embora essas tarefas sem dúvida irão exigir a energia e o trabalho de várias gerações para serem finalizadas.
O mais importante é que hoje os alemães já voltaram a enxergar-se como um povo só. Com a ajuda de políticas corretas, somos uma sociedade moderna, pronta para conquistar o futuro.


Tradução de Clara Allain


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