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FUTURO POLÍTICO
Conceito ocidental deverá ser adaptado à cultura do país; representatividade será privilegiada
Se existir, "democracia" afegã será diferente
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
Para ser politicamente estável e
isento de veleidades insurrecionais, o governo de qualquer Estado tem de ser representativo da
maioria de sua população. No
Ocidente, essa representatividade
é frequentemente confundida
com o conceito de democracia
-ou governo do povo.
Porém, no caso do Afeganistão,
essa representatividade e a legitimidade dos governantes não devem pressupor o estabelecimento
de um regime democrático nos
moldes ocidentais. Analistas ouvidos pela Folha salientam que,
na conjuntura afegã, a palavra
"democracia" precisa ser utilizada "com cautela".
Afinal, há o perigo de cairmos
na armadilha representada pelo
etnocentrismo. Este, segundo a
definição do dicionário "Aurélio", "é a tendência do pensamento a considerar as categorias, as
normas e os valores da própria sociedade ou cultura como parâmetro aplicável a todas as demais".
"Há duas questões principais
que, se a comunidade internacional não tomar cuidado, podem
dar um viés etnocêntrico aos esforços de estabilização política e
de reconstrução do Afeganistão.
Primeiro, a idéia de que o país pode chegar rapidamente a uma democracia total, conforme a vemos
no Ocidente", analisou o cientista
político Olivier Roy, um dos
maiores especialistas em Afeganistão da Europa.
"Segundo, a luta pela igualdade
entre homens e mulheres. A paridade de sexos não existirá tão cedo no Afeganistão, pois, embora
também tenha razões políticas,
esse tema é intrinsecamente cultural. Assim, qualquer mudança
requer muito tempo", acrescentou o diretor do Centro Nacional
de Pesquisa Científica (França).
"Mas essa questão é, acima de
tudo, simbólica. Com uma vice-presidente e uma ministra no poder em Cabul, a discussão perderá
força no Ocidente. No que diz respeito à democracia no Afeganistão, creio que a comunidade internacional a interprete como um
governo representativo da população, não como a necessidade absoluta da adoção de conceitos vigentes no Ocidente -por exemplo, um voto por cidadão."
Loya Jirga
Cautelosa e evitando cair num
etnocentrismo que lhe valeria severas críticas mesmo no Ocidente, a ONU tomou a precaução de
deixar a cargo das quatro delegações afegãs presentes à conferência de Bonn, terminada há poucos
dias, a tomada de decisões sobre o
futuro político do país. É claro
que não podemos negligenciar as
pressões internacionais, todavia,
em última análise, o acordo obtido na Alemanha é interafegão.
Apostando numa representatividade que legitimaria uma administração duradoura, a organização insistiu na realização de uma
Loya Jirga -grande assembléia
tradicional afegã-, que definirá a
composição do governo de transição. Este durará 18 meses e substituirá a gestão interina de seis meses, que deverá assumir o poder
em 22 de dezembro próximo.
Contudo, mais uma vez, a questão da legitimidade é colocada.
Nada garante que a Loya Jirga venha a ser representativa de toda a
população afegã. "Sua representatividade está diretamente ligada
à sua composição. Seus cerca de
500 membros serão escolhidos
por uma comissão independente,
que obteve seu mandato em
Bonn, mas que ainda deve ser definida", explicou Frederick Starr,
presidente do Instituto Ásia Central-Cáucaso, da Universidade
Johns Hopkins (EUA).
"Essa comissão, que terá entre
13 e 20 membros -escolhidos
entre notáveis tribais e líderes religiosos-, não deverá excluir a
participação dos exilados. Se existirem, os problemas certamente
serão relacionados a esse grupo,
sobretudo porque ele engloba
pessoas que nem mais têm a cidadania afegã", acrescentou.
Pragmatismo da ONU
Para Roy, as decisões tomadas
na Alemanha sob a égide da ONU
privilegiaram os grupos predominantes em duas regiões do Afeganistão, "o vale do Panshir [no
norte" e Candahar [no sul", pois
todos os cargos importantes da
futura administração interina foram divididos entre eles".
A Aliança do Norte, composta
por membros das minorias tadjique, uzbeque e hazara, é poderosa
no norte. Diferentes líderes tribais
(ou de guerra) de origem pashtu
controlam a região de Candahar.
Entre os últimos merece destaque
o futuro chefe do governo interino, Hamid Karzai. Segundo Roy,
a decisão da ONU foi baseada em
critérios práticos.
"Para que a futura administração interina fosse realmente representativa de todos os grupos
afegãos, seria necessária a presença de muitas dezenas de pessoas
nos postos-chave. Só assim toda a
sociedade civil afegã seria "devidamente" representada, o que, na
prática, seria inviável."
Assim, o sucesso do projeto de
estabilização política do Afeganistão depende de três fatores cruciais: o grau de legitimidade da
Loya Jirga, o entendimento entre
Karzai e os herdeiros de Ahmed
Shah Massoud (líder da Aliança
do Norte, morto pouco antes dos
ataques de 11 de setembro) e a ajuda financeira internacional para a
reconstrução e o desenvolvimento da infra-estrutura do país.
Entre os principais herdeiros de
Massoud estão Yunis Qanouni
(futuro ministro do Interior), Abdullah Abdullah (futuro chanceler) e Mohammed Fahim. "Se eles
não chegarem a um acordo, a comunidade internacional terá um
enorme problema em suas mãos.
Todavia tudo indica que eles não
querem mais lutar entre si indefinidamente, já que isso impediria a
chegada de fundos internacionais", indicou Roy.
Para Starr, há quatro critérios
cruciais para que o Afeganistão
receba ajuda financeira internacional para desenvolver-se. "Primeiro, seu governo deve representar a população em toda a sua
diversidade. Todos os grupos devem sentir-se ouvidos pela administração mesmo que não façam
parte dela. Segundo, o país deve
renunciar ao terrorismo. Terceiro, deve opor-se ao cultivo de papoula [da qual se obtém o ópio".
Quarto, ele precisa respeitar a Declaração Universal dos Direitos
Humanos da ONU [DUDH"."
Entretanto ele ressalta que, embora o documento assinado em
Bonn permita uma interpretação
otimista, "ninguém pode afirmar
que esses compromissos serão
respeitados". A questão do terrorismo parece não representar
problema após as consequências
que o Taleban teve de enfrentar. A
receita do plantio de papoula pode ser compensada pela entrada
de ajuda financeira internacional.
Entretanto a DUDH, em seu
preâmbulo, determina a igualdade de direitos entre os homens e
as mulheres. Mas, como explicou
Roy, esse aspecto não deve representar um obstáculo num primeiro momento se algumas medidas
simbólicas forem tomadas.
De qualquer modo, o Afeganistão já viveu um período de relativa abertura política, de 1964 a
1973, sob a direção do então monarca constitucional, Zahir Shah,
hoje exilado na Itália. Ademais,
para Roy, a queda do Taleban representou o fim do fator ideológico no jogo político afegão. "As divergências atuais dizem respeito à
divisão de poder, não a seu controle hegemônico."
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