São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2001

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FUTURO POLÍTICO

Conceito ocidental deverá ser adaptado à cultura do país; representatividade será privilegiada

Se existir, "democracia" afegã será diferente

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Para ser politicamente estável e isento de veleidades insurrecionais, o governo de qualquer Estado tem de ser representativo da maioria de sua população. No Ocidente, essa representatividade é frequentemente confundida com o conceito de democracia -ou governo do povo.
Porém, no caso do Afeganistão, essa representatividade e a legitimidade dos governantes não devem pressupor o estabelecimento de um regime democrático nos moldes ocidentais. Analistas ouvidos pela Folha salientam que, na conjuntura afegã, a palavra "democracia" precisa ser utilizada "com cautela".
Afinal, há o perigo de cairmos na armadilha representada pelo etnocentrismo. Este, segundo a definição do dicionário "Aurélio", "é a tendência do pensamento a considerar as categorias, as normas e os valores da própria sociedade ou cultura como parâmetro aplicável a todas as demais".
"Há duas questões principais que, se a comunidade internacional não tomar cuidado, podem dar um viés etnocêntrico aos esforços de estabilização política e de reconstrução do Afeganistão. Primeiro, a idéia de que o país pode chegar rapidamente a uma democracia total, conforme a vemos no Ocidente", analisou o cientista político Olivier Roy, um dos maiores especialistas em Afeganistão da Europa.
"Segundo, a luta pela igualdade entre homens e mulheres. A paridade de sexos não existirá tão cedo no Afeganistão, pois, embora também tenha razões políticas, esse tema é intrinsecamente cultural. Assim, qualquer mudança requer muito tempo", acrescentou o diretor do Centro Nacional de Pesquisa Científica (França).
"Mas essa questão é, acima de tudo, simbólica. Com uma vice-presidente e uma ministra no poder em Cabul, a discussão perderá força no Ocidente. No que diz respeito à democracia no Afeganistão, creio que a comunidade internacional a interprete como um governo representativo da população, não como a necessidade absoluta da adoção de conceitos vigentes no Ocidente -por exemplo, um voto por cidadão."

Loya Jirga
Cautelosa e evitando cair num etnocentrismo que lhe valeria severas críticas mesmo no Ocidente, a ONU tomou a precaução de deixar a cargo das quatro delegações afegãs presentes à conferência de Bonn, terminada há poucos dias, a tomada de decisões sobre o futuro político do país. É claro que não podemos negligenciar as pressões internacionais, todavia, em última análise, o acordo obtido na Alemanha é interafegão.
Apostando numa representatividade que legitimaria uma administração duradoura, a organização insistiu na realização de uma Loya Jirga -grande assembléia tradicional afegã-, que definirá a composição do governo de transição. Este durará 18 meses e substituirá a gestão interina de seis meses, que deverá assumir o poder em 22 de dezembro próximo.
Contudo, mais uma vez, a questão da legitimidade é colocada. Nada garante que a Loya Jirga venha a ser representativa de toda a população afegã. "Sua representatividade está diretamente ligada à sua composição. Seus cerca de 500 membros serão escolhidos por uma comissão independente, que obteve seu mandato em Bonn, mas que ainda deve ser definida", explicou Frederick Starr, presidente do Instituto Ásia Central-Cáucaso, da Universidade Johns Hopkins (EUA).
"Essa comissão, que terá entre 13 e 20 membros -escolhidos entre notáveis tribais e líderes religiosos-, não deverá excluir a participação dos exilados. Se existirem, os problemas certamente serão relacionados a esse grupo, sobretudo porque ele engloba pessoas que nem mais têm a cidadania afegã", acrescentou.

Pragmatismo da ONU
Para Roy, as decisões tomadas na Alemanha sob a égide da ONU privilegiaram os grupos predominantes em duas regiões do Afeganistão, "o vale do Panshir [no norte" e Candahar [no sul", pois todos os cargos importantes da futura administração interina foram divididos entre eles".
A Aliança do Norte, composta por membros das minorias tadjique, uzbeque e hazara, é poderosa no norte. Diferentes líderes tribais (ou de guerra) de origem pashtu controlam a região de Candahar. Entre os últimos merece destaque o futuro chefe do governo interino, Hamid Karzai. Segundo Roy, a decisão da ONU foi baseada em critérios práticos.
"Para que a futura administração interina fosse realmente representativa de todos os grupos afegãos, seria necessária a presença de muitas dezenas de pessoas nos postos-chave. Só assim toda a sociedade civil afegã seria "devidamente" representada, o que, na prática, seria inviável."
Assim, o sucesso do projeto de estabilização política do Afeganistão depende de três fatores cruciais: o grau de legitimidade da Loya Jirga, o entendimento entre Karzai e os herdeiros de Ahmed Shah Massoud (líder da Aliança do Norte, morto pouco antes dos ataques de 11 de setembro) e a ajuda financeira internacional para a reconstrução e o desenvolvimento da infra-estrutura do país.
Entre os principais herdeiros de Massoud estão Yunis Qanouni (futuro ministro do Interior), Abdullah Abdullah (futuro chanceler) e Mohammed Fahim. "Se eles não chegarem a um acordo, a comunidade internacional terá um enorme problema em suas mãos. Todavia tudo indica que eles não querem mais lutar entre si indefinidamente, já que isso impediria a chegada de fundos internacionais", indicou Roy.
Para Starr, há quatro critérios cruciais para que o Afeganistão receba ajuda financeira internacional para desenvolver-se. "Primeiro, seu governo deve representar a população em toda a sua diversidade. Todos os grupos devem sentir-se ouvidos pela administração mesmo que não façam parte dela. Segundo, o país deve renunciar ao terrorismo. Terceiro, deve opor-se ao cultivo de papoula [da qual se obtém o ópio". Quarto, ele precisa respeitar a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU [DUDH"."
Entretanto ele ressalta que, embora o documento assinado em Bonn permita uma interpretação otimista, "ninguém pode afirmar que esses compromissos serão respeitados". A questão do terrorismo parece não representar problema após as consequências que o Taleban teve de enfrentar. A receita do plantio de papoula pode ser compensada pela entrada de ajuda financeira internacional.
Entretanto a DUDH, em seu preâmbulo, determina a igualdade de direitos entre os homens e as mulheres. Mas, como explicou Roy, esse aspecto não deve representar um obstáculo num primeiro momento se algumas medidas simbólicas forem tomadas.
De qualquer modo, o Afeganistão já viveu um período de relativa abertura política, de 1964 a 1973, sob a direção do então monarca constitucional, Zahir Shah, hoje exilado na Itália. Ademais, para Roy, a queda do Taleban representou o fim do fator ideológico no jogo político afegão. "As divergências atuais dizem respeito à divisão de poder, não a seu controle hegemônico."



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