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Otimismo sobre acordo é exagerado, diz pesquisador
ALCINO LEITE NETO
DE PARIS
Na última quarta-feira, quatro
delegações afegãs assinaram em
Bonn um acordo que definiu o
novo governo do país. Correu o
mundo uma onda de otimismo a
respeito do futuro do Afeganistão, país onde praticamente todas
as instituições foram destruídas
em 23 anos de guerra.
A onda de otimismo não enfeitiçou, porém, o pesquisador François Lafargue, especialista francês
em Afeganistão. Para ele, o acordo de Bonn deixa de colocar questões essenciais, que assim que forem postas (e já estão sendo) vão
redespertar as antigas rivalidades.
Lafargue diz não acreditar que o
financiamento mundial para a reconstrução do país seja tão provável quanto levam a crer as lideranças mundiais. "A África do Sul espera desde 1994 a ajuda financeira
prometida para erguer instituições democráticas", diz ele, na entrevista abaixo.
Lafargue é professor de geopolítica na Universidade de Saint-Quentin-en-Yvelines (França).
Em 1999, publicou "Afghanistan:
Opium, Pétrole et Talibans" (Afeganistão: ópio, petróleo e Taleban). Nos próximos dias, estará
lançando "Géopolitique de l'Afghanistan" (Geopolítica do Afeganistão), pela editora Ellipses.
Folha - O sr. acredita que o acordo
firmado em Bonn será respeitado e
posto em prática no Afeganistão?
François Lafargue - Tenho uma
posição cautelosa a respeito desse
acordo. Ele foi assinado sob pressão e elude algumas questões fundamentais. Como serão eleitos os
deputados do futuro Parlamento?
Se for por proporcionalidade, os
pashtus dominarão de novo o
país. Outra questão: o Afeganistão será um Estado federativo? O
governo interino reúne personalidades diversas demais para que
elas não se afrontem. Assim que
as questões básicas forem colocadas, as rivalidades redespertarão.
Será preciso levar os guerrilheiros
do Taleban a um tribunal internacional? Quem vai gerir a ajuda internacional? Fora isso, a escolha
dos ministros não foi feita a partir
de um critério de competência ou
de integridade, mas em função de
critérios étnicos.
Folha - A partir dessa distribuição
étnica, como o sr. descreveria o
quadro geopolítico do país agora?
Quem ganhou e quem perdeu?
Lafargue - Sem dúvida nenhuma, as populações não-pashtus,
como os uzbeques e os tadjiques,
mas igualmente os hazaras, parecem os vencedores do conflito.
Entretanto essa vitória é relativa,
pois o chefe do governo, assim como o ministro das Finanças, são
pashtus. Nos próximos anos, é
provável que os pashtus reencontrem sua influência tradicional,
pois eles têm apoio do Paquistão.
Folha - E no plano internacional,
quem ganhou com o acordo?
Lafargue - O Paquistão parece
na realidade e paradoxalmente
um dos ganhadores. O general
Musharraf soube controlar a contestação islâmica. Ele se juntou
desde os primeiros dias à coalizão
americana. Obteve um reconhecimento internacional que não havia conhecido. Todas as sanções
econômicas contra o seu país foram suspensas. Como prêmio por
sua participação, os Estados Unidos sem dúvida prometeram um
apoio mais sólido ao problema na
Caxemira. O país perdedor me
parece ser a Rússia. Implantando-se no Uzbequistão e no Tadjiquistão, Washington tomou lugar na
esfera de influência russa.
Folha - O que influenciou na escolha de Hamid Karzai para a chefia
do governo?
Lafargue - Karzai tinha o perfil
ideal, além de ser pashtu, que é a
etnia majoritária no país. Desde
1982, ele se engajou contra a
URSS. Seu passado de resistente
lhe dá garantias junto aos EUA.
Fora isso, ele fala correntemente o
inglês. Sua oposição ao Taleban
foi sem nuances.
Folha - Quais são os perigos que o
Afeganistão poderá enfrentar agora, do ponto de vista político?
Lafargue - As promessas da comunidade internacional nem
sempre são mantidas. A África do
Sul espera desde 1994 a ajuda financeira prometida para erguer
as instituições democráticas. Eu
poderia também lembrar o caso
de Kosovo e da Bósnia. Nem as
Nações Unidas nem a União Européia têm recursos financeiros
para reconstruir o país. Dizer o inverso é uma mentira. Eu creio que
uma força internacional será deslocada para o Afeganistão. Depois, com o passar dos anos, os
efetivos diminuirão, até ficarem
puramente simbólicos. O perigo
principal é ver o Afeganistão se
tornar uma zona cinza dividida
entre diferentes chefes de guerra.
Folha - No caso de haver um esforço de democratização do país,
quais as maiores dificuldades?
Lafargue - Num país onde 70%
da população é analfabeta, o termo democracia não tem sentido.
As listas eleitorais não foram nem
mesmo estabelecidas. Democracia significa debates públicos, imprensa livre, sindicatos representativos. A democracia no Afeganistão não será possível sem uma
mudança de geração.
Folha - O sr. não acha que o acordo de Bonn já firmou uma nova geração de líderes afegãos?
Lafargue - O termo nova geração
me parece ambíguo. Todos os responsáveis políticos atuais participaram da guerra contra a URSS e
depois da guerra civil. Para que
haja uma nova geração, seria preciso homens e mulheres menos
marcados por vínculos étnicos e
homens e mulheres alheios à submissão tribal. É preciso, acho, esperar ainda uma geração que não
tenha conhecido diretamente a
guerra contra a URSS.
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