São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2001

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Otimismo sobre acordo é exagerado, diz pesquisador

ALCINO LEITE NETO
DE PARIS

Na última quarta-feira, quatro delegações afegãs assinaram em Bonn um acordo que definiu o novo governo do país. Correu o mundo uma onda de otimismo a respeito do futuro do Afeganistão, país onde praticamente todas as instituições foram destruídas em 23 anos de guerra.
A onda de otimismo não enfeitiçou, porém, o pesquisador François Lafargue, especialista francês em Afeganistão. Para ele, o acordo de Bonn deixa de colocar questões essenciais, que assim que forem postas (e já estão sendo) vão redespertar as antigas rivalidades.
Lafargue diz não acreditar que o financiamento mundial para a reconstrução do país seja tão provável quanto levam a crer as lideranças mundiais. "A África do Sul espera desde 1994 a ajuda financeira prometida para erguer instituições democráticas", diz ele, na entrevista abaixo.
Lafargue é professor de geopolítica na Universidade de Saint-Quentin-en-Yvelines (França). Em 1999, publicou "Afghanistan: Opium, Pétrole et Talibans" (Afeganistão: ópio, petróleo e Taleban). Nos próximos dias, estará lançando "Géopolitique de l'Afghanistan" (Geopolítica do Afeganistão), pela editora Ellipses.

Folha - O sr. acredita que o acordo firmado em Bonn será respeitado e posto em prática no Afeganistão?
François Lafargue -
Tenho uma posição cautelosa a respeito desse acordo. Ele foi assinado sob pressão e elude algumas questões fundamentais. Como serão eleitos os deputados do futuro Parlamento? Se for por proporcionalidade, os pashtus dominarão de novo o país. Outra questão: o Afeganistão será um Estado federativo? O governo interino reúne personalidades diversas demais para que elas não se afrontem. Assim que as questões básicas forem colocadas, as rivalidades redespertarão. Será preciso levar os guerrilheiros do Taleban a um tribunal internacional? Quem vai gerir a ajuda internacional? Fora isso, a escolha dos ministros não foi feita a partir de um critério de competência ou de integridade, mas em função de critérios étnicos.

Folha - A partir dessa distribuição étnica, como o sr. descreveria o quadro geopolítico do país agora? Quem ganhou e quem perdeu?
Lafargue -
Sem dúvida nenhuma, as populações não-pashtus, como os uzbeques e os tadjiques, mas igualmente os hazaras, parecem os vencedores do conflito. Entretanto essa vitória é relativa, pois o chefe do governo, assim como o ministro das Finanças, são pashtus. Nos próximos anos, é provável que os pashtus reencontrem sua influência tradicional, pois eles têm apoio do Paquistão.

Folha - E no plano internacional, quem ganhou com o acordo?
Lafargue -
O Paquistão parece na realidade e paradoxalmente um dos ganhadores. O general Musharraf soube controlar a contestação islâmica. Ele se juntou desde os primeiros dias à coalizão americana. Obteve um reconhecimento internacional que não havia conhecido. Todas as sanções econômicas contra o seu país foram suspensas. Como prêmio por sua participação, os Estados Unidos sem dúvida prometeram um apoio mais sólido ao problema na Caxemira. O país perdedor me parece ser a Rússia. Implantando-se no Uzbequistão e no Tadjiquistão, Washington tomou lugar na esfera de influência russa.

Folha - O que influenciou na escolha de Hamid Karzai para a chefia do governo?
Lafargue -
Karzai tinha o perfil ideal, além de ser pashtu, que é a etnia majoritária no país. Desde 1982, ele se engajou contra a URSS. Seu passado de resistente lhe dá garantias junto aos EUA. Fora isso, ele fala correntemente o inglês. Sua oposição ao Taleban foi sem nuances.

Folha - Quais são os perigos que o Afeganistão poderá enfrentar agora, do ponto de vista político?
Lafargue -
As promessas da comunidade internacional nem sempre são mantidas. A África do Sul espera desde 1994 a ajuda financeira prometida para erguer as instituições democráticas. Eu poderia também lembrar o caso de Kosovo e da Bósnia. Nem as Nações Unidas nem a União Européia têm recursos financeiros para reconstruir o país. Dizer o inverso é uma mentira. Eu creio que uma força internacional será deslocada para o Afeganistão. Depois, com o passar dos anos, os efetivos diminuirão, até ficarem puramente simbólicos. O perigo principal é ver o Afeganistão se tornar uma zona cinza dividida entre diferentes chefes de guerra.

Folha - No caso de haver um esforço de democratização do país, quais as maiores dificuldades?
Lafargue -
Num país onde 70% da população é analfabeta, o termo democracia não tem sentido. As listas eleitorais não foram nem mesmo estabelecidas. Democracia significa debates públicos, imprensa livre, sindicatos representativos. A democracia no Afeganistão não será possível sem uma mudança de geração.

Folha - O sr. não acha que o acordo de Bonn já firmou uma nova geração de líderes afegãos?
Lafargue -
O termo nova geração me parece ambíguo. Todos os responsáveis políticos atuais participaram da guerra contra a URSS e depois da guerra civil. Para que haja uma nova geração, seria preciso homens e mulheres menos marcados por vínculos étnicos e homens e mulheres alheios à submissão tribal. É preciso, acho, esperar ainda uma geração que não tenha conhecido diretamente a guerra contra a URSS.



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