São Paulo, Quarta-feira, 10 de Fevereiro de 1999
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MEMÓRIA
Mulher que, num campo nazista, deu à luz uma criança vive no Brasil e quer ver, com o filho, filme italiano sobre a guerra
Judia conta vida do "bebê sobrevivente"

Jorge Araújo - 4.fev.99/Folha Imagem
George Legmann, hoje com 54 anos, um dos raros casos de crianças nascidas em campos de concentração que sobreviveram ao holocausto


OTÁVIO DIAS
da Reportagem Local

O brasileiro George Legmann, 54, é um dos protagonistas de uma história pouco conhecida do Holocausto: ele e mais seis bebês judeus estão entre os raros casos de crianças nascidas num campo de concentração nazista que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial.
George e sua mãe, Elisabeta, planejam assistir, no domingo, ao filme ""A Vida É Bela", do italiano Roberto Benigni. A produção relata, com bom humor, a história de um pai e seu filho enfrentando a barbárie de um campo nazista.
""Minha mãe quer ver se o filme retrata fielmente a situação vivida pelas crianças num campo de concentração", afirma George.
Sete bebês nasceram entre dezembro de 1944 e os primeiros meses de 1945, no campo de trabalho Kaufering 1, na cidade de Landsberg (sul da Alemanha). George era um deles.
Na lógica dos campos de concentração, mulheres grávidas representavam um fardo que deveria ser eliminado antes das pessoas aptas ao trabalho. Elisabeta Legmann engravidou quando ainda vivia com seu marido, Josef, em Cluj, cidade de população romena então sob controle da Alemanha nazista.
Em junho de 1944, os judeus da cidade foram deportados para Auschwitz-Birkenau, campo de extermínio nazista na Polônia (invadida por Hitler em 1939).
Quando desceu do trem, Elisabeta, então com 29 anos, e sua mãe, como todos os prisioneiros, passaram por um processo de seleção.
"Os velhos, os doentes e as grávidas vão para o caminhão. O resto vai a pé", disseram os alemães, segundo conta Elisabeta à Folha.
Sem saber que o primeiro grupo -considerado inapto para o trabalho pelos nazistas- seria enviado para as câmaras de gás, ela optou por seguir a maioria. "A senhora não é velha, eu não estou grávida", disse Elisabeta à mãe. As duas foram enviadas para o campo de trabalho forçado de Landsberg.
Nos meses seguintes, ela trabalhou puxando carroças cheias de pedras. A gestação foi disfarçada com faixas e roupas largas.
Só descoberta na penúltima semana, a gravidez surpreendeu os alemães, que realizaram então uma busca por grávidas em diversos campos. Encontraram seis, todas trazidas para Landsberg.
A deportação para Auschwitz seria o mais provável, mas no fim de 44 os alemães já estavam perto da derrota. "Os campos estavam sendo abandonados às pressas. Não havia para onde nos mandar", diz.
"Ao ver que a guerra estava no fim, o comandante do campo decidiu nos deixar vivas porque isso poderia pesar a seu favor depois da derrota", afirma ela.
George foi o primeiro a nascer, em 8 de dezembro de 44. Os outros seis bebês vieram logo depois.
Pouco antes da libertação, em abril de 45, mãe e filho viveram o momento mais dramático de sua história. As forças aliadas bombardearam a região de Landsberg e, no ataque, o filho de um oficial alemão morreu, segundo Elisabeta.
"Dias depois, o pai disse que queria ver meu filho. Mandei a criança e ele me fez uma proposta: "Você me dá o seu filho e eu o adoto"."
"Era uma escolha difícil. Se não desse, a criança podia ser morta. Se desse, George se tornaria um alemão. Depois de três noites sem dormir, decidi não dar", relata.
Em 45, depois da rendição alemã, Elisabeta se reencontrou com o marido -a quem não via desde Cluj, e que também havia sobrevivido- e, contra sua vontade, a família voltou para a Romênia.
Viveram no país, sob regime comunista, até 1960, quando 50 famílias romenas receberam autorização para imigrar para o Brasil.
Os Legmann chegaram em 1961 e vieram morar em São Paulo.
A primeira lembrança é de uma tarde de domingo, dia de jogo no estádio do Pacaembu. "De repente, ouvimos explosões. No início, nos assustamos. Mas logo percebemos que eram só rojões", diz Elisabeta.
Elisabeta, 82, e George, engenheiro químico, vivem atualmente em Higienópolis, em São Paulo. A irmã Georgeta, 51, completa a família. O pai morreu em 96.
Os outros seis bebês estão vivos e moram nos EUA, Canadá, Hungria, República Tcheca e Israel.
Indagado sobre eventuais sequelas causadas por ter passado seus primeiros dias de vida num campo, George diz: ""Sou uma pessoa muito sensível e nervosa".
LEIA MAIS sobre o filme "A Vida É Bela" no caderno Ilustrada


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