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São Paulo, quinta-feira, 10 de abril de 2003

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Queda de estátua é o símbolo da invasão dos EUA

SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A DOHA (QATAR)

Incompleta, com gafes e mais demorada do que o esperado. A queda de uma estátua de Saddam Hussein ontem em Bagdá não poderia simbolizar melhor essa invasão da coalizão anglo-americana no Iraque, que chega ao seu 22º dia às portas da vitória final.
Primeiro, pelo local do ocorrido. Trata-se da praça Al Firdus (do paraíso, em árabe), que fica a 20 m do hotel Palestine, onde até ontem estavam concentrados os jornalistas estrangeiros em Bagdá e onde dois cinegrafistas foram mortos anteontem pela coalizão.
A movimentação que culminou na queda da estátua começou pela manhã, quando os primeiros repórteres desceram para tomar café e não encontraram os guias apontados pelo governo.
O motivo era simples: não havia mais governo. Assim, livres pela primeira vez, os jornalistas saíram à rua a tempo de ver os primeiros marines se aproximando.
Já era hora do almoço, e os primeiros bagdalis começaram a chegar ao local. Em duas horas, pelo menos cem pessoas cercavam a estátua de 6 m de altura, plantada num pedestal de concreto de outros 6 m. A auto-homenagem do ditador iraquiano fora inaugurada havia menos de 12 meses, para festejar seus 65 anos.
De terno e com a mão direita levantada, ele saudava de um lado o hotel Palestine e seu vizinho, o Sheraton, e, do outro, uma mesquita. Logo, arrumou-se uma escada e o primeiro iraquiano alcançou o pedestal. Então, outros dois se juntaram a ele e alguém colocou ao alcance uma corda. Esta iria ganhar diferentes posições ao longo do corpo de Saddam. Tudo em vão. Os marines, que observavam de longe e se comprometeram a dar o puxão final, disseram que o fio não suportaria o arranque.
Foi quando apareceu a primeira marreta, manejada por um iraquiano, que passou a desferir golpes furiosos contra o pedestal. Outros se sucederam, sempre posando para os fotógrafos.
Ventava muito, e um tiro disparado talvez por um franco-atirador iraquiano lembrou a todos que aquela batalha poderia ter sido ganha, mas a guerra não. Muitos se esconderam e os marines tomaram posição de defesa.
O povo, agora já perto dos 200, gritava "abaixo Saddam!" (que não haja ilusão, porém: a comemoração principal, que só sairia das bocas dos presentes no final, seria o "Só Allah é Deus!").
Após as 17h30 locais (9h30 de Brasília), entra em cena o M-88, conhecido como "auxiliador de tanques", um veículo usado pelo Exército dos EUA para tirar seus armamentos pesados de atoleiros e desastres. Em vinte minutos de suspense, os militares decidem que o carro sozinho não fará o serviço. É preciso um guincho.
Este é trazido, e dois marines acorrentam a estátua a ele. É o momento da gafe, que ecoaria entre protestos pelas emissoras árabes a noite inteira: com uma bandeira norte-americana, um soldado cobre a face do ditador.
É retirada sob vaias. O âncora da TV Abu Dhabi brada no ar: "Esta bandeira deveria ser a iraquiana!". De repente, se materializa nas mãos de alguém o estandarte do país, com uma diferença importante. A bandeira trazida é a original do Iraque, antes da modificação ordenada por Saddam Hussein em 1991, na Guerra do Golfo, quando o dístico religioso "Allahu Akbar" ("Deus é grande") foi acrescentado.
Já estamos perto das 18h. Puxada pelo M-88, a estátua demora a ceder, cheia de metáforas. Sob chuva de pedradas, Saddam vai caindo em Bagdá aos poucos, devagarinho, e ainda agarrado ao suporte. Tão logo atinge o chão, dezenas de populares correm para pisar seus restos. Mais tarde, a cabeça seria arrastada pelas ruas em festa. Fincados no pedestal, porém, os sapatos do ditador continuaram firmes. Resta saber agora quem vai ocupá-los.


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