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Queda de estátua é o símbolo da
invasão dos EUA
SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A DOHA (QATAR)
Incompleta, com gafes e mais
demorada do que o esperado. A
queda de uma estátua de Saddam
Hussein ontem em Bagdá não poderia simbolizar melhor essa invasão da coalizão anglo-americana no Iraque, que chega ao seu 22º
dia às portas da vitória final.
Primeiro, pelo local do ocorrido. Trata-se da praça Al Firdus
(do paraíso, em árabe), que fica a
20 m do hotel Palestine, onde até
ontem estavam concentrados os
jornalistas estrangeiros em Bagdá
e onde dois cinegrafistas foram
mortos anteontem pela coalizão.
A movimentação que culminou
na queda da estátua começou pela
manhã, quando os primeiros repórteres desceram para tomar café e não encontraram os guias
apontados pelo governo.
O motivo era simples: não havia
mais governo. Assim, livres pela
primeira vez, os jornalistas saíram
à rua a tempo de ver os primeiros
marines se aproximando.
Já era hora do almoço, e os primeiros bagdalis começaram a
chegar ao local. Em duas horas,
pelo menos cem pessoas cercavam a estátua de 6 m de altura,
plantada num pedestal de concreto de outros 6 m. A auto-homenagem do ditador iraquiano fora
inaugurada havia menos de 12
meses, para festejar seus 65 anos.
De terno e com a mão direita levantada, ele saudava de um lado o
hotel Palestine e seu vizinho, o
Sheraton, e, do outro, uma mesquita. Logo, arrumou-se uma escada e o primeiro iraquiano alcançou o pedestal. Então, outros
dois se juntaram a ele e alguém
colocou ao alcance uma corda.
Esta iria ganhar diferentes posições ao longo do corpo de Saddam. Tudo em vão. Os marines,
que observavam de longe e se
comprometeram a dar o puxão final, disseram que o fio não suportaria o arranque.
Foi quando apareceu a primeira
marreta, manejada por um iraquiano, que passou a desferir golpes furiosos contra o pedestal.
Outros se sucederam, sempre posando para os fotógrafos.
Ventava muito, e um tiro disparado talvez por um franco-atirador iraquiano lembrou a todos
que aquela batalha poderia ter sido ganha, mas a guerra não. Muitos se esconderam e os marines
tomaram posição de defesa.
O povo, agora já perto dos 200,
gritava "abaixo Saddam!" (que
não haja ilusão, porém: a comemoração principal, que só sairia
das bocas dos presentes no final,
seria o "Só Allah é Deus!").
Após as 17h30 locais (9h30 de
Brasília), entra em cena o M-88,
conhecido como "auxiliador de
tanques", um veículo usado pelo
Exército dos EUA para tirar seus
armamentos pesados de atoleiros
e desastres. Em vinte minutos de
suspense, os militares decidem
que o carro sozinho não fará o
serviço. É preciso um guincho.
Este é trazido, e dois marines
acorrentam a estátua a ele. É o
momento da gafe, que ecoaria entre protestos pelas emissoras árabes a noite inteira: com uma bandeira norte-americana, um soldado cobre a face do ditador.
É retirada sob vaias. O âncora
da TV Abu Dhabi brada no ar:
"Esta bandeira deveria ser a iraquiana!". De repente, se materializa nas mãos de alguém o estandarte do país, com uma diferença
importante. A bandeira trazida é a
original do Iraque, antes da modificação ordenada por Saddam
Hussein em 1991, na Guerra do
Golfo, quando o dístico religioso
"Allahu Akbar" ("Deus é grande") foi acrescentado.
Já estamos perto das 18h. Puxada pelo M-88, a estátua demora a
ceder, cheia de metáforas. Sob
chuva de pedradas, Saddam vai
caindo em Bagdá aos poucos, devagarinho, e ainda agarrado ao
suporte. Tão logo atinge o chão,
dezenas de populares correm para pisar seus restos. Mais tarde, a
cabeça seria arrastada pelas ruas
em festa. Fincados no pedestal,
porém, os sapatos do ditador continuaram firmes. Resta saber agora quem vai ocupá-los.
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