São Paulo, domingo, 10 de abril de 2005

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O advogado Ives Gandra, ligado à Opus Dei, diz que o catolicismo guia-se pelo eterno e valoriza a mulher como nenhuma religião

"Igreja não é moderna nem retrógrada"

LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

Poucos podem se vangloriar de ter um bilhete dirigido a si e escrito de próprio punho por um santo católico. O professor da Universidade Mackenzie e presidente da Academia Paulista de Letras, o advogado tributarista Ives Gandra da Silva Martins, pode.
O santo em questão é Josemaría Escrivá, São Josemaría, fundador da Opus Dei ("Obra de Deus", em latim), organização transformada em prelazia pessoal pelo papa João Paulo 2º e acusada por teólogos "progressistas" de dirigir o processo de "restauração" dogmática que se teria verificado durante o último pontificado.
Presidente do Centro de Extensão Universitária, obra corporativa da Opus Dei no Brasil, Silva Martins enviou em 1975 ao monsenhor Escrivá um volume com escritos produzidos pelos simpatizantes nacionais da Obra (outra forma para designar a organização). A retribuição veio na forma de um bilhete:
"Querido Ives: Muchas gracias por tu felicitación y por la publicación que has tenido la amabilidad de enviarme. Te ruego que sigas muy unido a mi acción de gracias, y que reces por mi, para que sea un sacerdote bueno y fiel. Te encomienda y te bendice, con todos los tuyos, afectuosamente, Josemaria."
Meses depois do bilhete, Escrivá morreu. Bastaram 27 anos para encontrar o seu lugar no altar dos santos católicos. A canonização foi feita por João Paulo 2º.

Outro ponto de vista
Nos mais de 40 anos de convivência espiritual com a Obra, Silva Martins aprendeu a enxergar os desígnios da Igreja do ponto de vista da eternidade.
Ele recusa-se, por exemplo, a lançar suas fichas na grande aposta pré-conclave, que versa sobre se o perfil do novo papa será "conservador" ou "moderno". "Os valores da Igreja não são nem modernos nem retrógrados. São eternos."
Aos 70 anos, o professor explica: "Muda a forma - João Paulo 1º era um homem de vida interior mais intensa, enquanto João Paulo 2º era um atleta -, mas a mensagem é única há dois mil anos.
"A doutrina social da Igreja, por exemplo, é a mesma desde a edição [pelo papa Leão 13] da [encíclica] "Rerum Novarum", de 1891, chegando à [encíclica] "Laborem Exercens", dada a público 90 anos depois pelo papa João Paulo 2º", diz o professor. Esse patrimônio doutrinal expressa-se na condenação da luta de classes e do ateísmo, e na defesa da dignidade do trabalho. "Valeu durante o pontificado leonino, passando por todos os papas, incluindo João 23 e o Paulo 6º do Concílio Vaticano 2º. Foi apenas na forma que a Igreja mudou."
Mas, professor, e as objeções dos teólogos ditos "progressistas" ao conservadorismo de João Paulo 2º na questão dos costumes, por exemplo?
"Nenhuma religião, nem a judaica nem a islâmica, valorizou desde sempre a mulher como a católica. Qual delas tem uma figura feminina proeminente como é a Virgem Maria, objeto de adoração de toda a Igreja? Não se prevê o sacerdócio para mulheres, porque não havia mulheres entre os apóstolos, a quem foi confiada a tarefa de ministrar o sacramento da eucaristia. Não há o que fazer em relação a isso, mas Cristo estabeleceu que o adultério é um pecado que pesa sobre o homem tanto quanto sobre a mulher. E o que dizer da escolarização que a Igreja propiciou para as mulheres, e que gerou figuras emblemáticas como Santa Catarina de Siena, santa e doutora da Igreja do século 14, época do Grande Cisma do Ocidente, quando dois papas disputaram o rebanho católico. A cardeais, bispos e prelados, Catarina escreveu 150 cartas. Em uma delas, o questionamento doutoral: "Vossas eminências cometem eminentíssimos erros". Isso, muito antes do feminismo."

Feto róseo

E o aborto, professor? "A condenação ao aborto está nos fundamentos da Igreja. O quinto mandamento estabelece: "Não matarás". O que a Igreja vem defendendo é que o assassinato do embrião, o mais frágil entre os seres, é um pecado mortal. Nenhuma novidade nisso."
A organização pró-aborto conhecida como Catholics for a Free Choice, no Brasil representada pela ONG Católicas pelo Direito de Decidir, acusa a igreja sob João Paulo 2º de ter como modelo uma mulher voltada ao sacrifício, ao sofrimento e à entrega aos outros. Mas na mesa do escritório do professor Silva Martins, no bairro paulistano dos Jardins, um enfeite minúsculo evidencia a importância que ele dá à acusação.
O adorno impressiona até pelo tamanho. Trata-se da réplica em tamanho natural de um feto humano aos dois meses de gestação. Róseo, pés, mãos, todo o corpo formado, e cinco centímetros de comprimento, mostra a fragilidade da vida que a Igreja e a Opus Dei acreditam ter como missão defender.
"Eu entendo que as Católicas pelo Direito de Decidir queiram participar do debate sobre a legislação do aborto. O que não entendo é que elas queiram destruir um dos pilares sobre os quais se erigiu a própria Igreja, e desejem continuar como membros dela", diz Silva Martins.

Apenas catolicismo
E não teria sido a intransigência na defesa desses valores a responsável pela perda de fiéis católicos, extraviados em seitas e nas múltiplas denominações pentecostais?
"A Igreja tem dois mil anos. Foi defendida na origem por uns broncos, que eram os apóstolos. Atravessou maus pontificados, como o de Alexandre 6º [de Rodrigo Borgia, 1492-1503], caracterizado pela corrupção e devassidão que, no entanto, não conseguiram contaminar o tesouro da Igreja. Mais recentemente, foi dada como morta durante períodos como o Terror na Revolução Francesa [1793-1794], ou a Guerra Civil espanhola [1936-1939], em que seis mil religiosos foram assassinados. Isso sem contar o ateísmo comunista vivido pela Polônia. Os teólogos que vêem nos dias atuais o fim da Igreja desconhecem história", diz Silva Martins. "O papado de João Paulo 2º teve a propriedade de vocalizar os valores mais caros da Igreja." Isso não é conservadorismo, diz ele. É apenas catolicismo.
A última pergunta: a Opus Dei vai dar as cartas na sucessão de João Paulo 2º? "A Opus Dei existe apenas para santificar o trabalho, para dar glória a Deus e para servir aos outros", recita o professor.

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