São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2008

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Morales foi mau político, diz biógrafo

Para sociólogo, presidente ganhou pecha de autoritário ao impor aprovação de Constituinte por maioria simples

Influência de Chávez sobre boliviano é superestimada, diz Martín Sivak; para ele, oriente do país se insurgiria mesmo com autonomia

DA ENVIADA A LA PAZ

Evo Morales, "filho da precariedade da Bolívia", levou a ginástica sindical dos tempos de cocaleiro ao palácio de governo. Manteve a ligação com camponeses e indígenas, mas falhou em conquistar o rico leste e perdeu parte da classe média que lhe era simpática em 2005. O retrato íntimo do boliviano e flashes de sua Presidência, no livro "Jefazo" (Sudamericana, 2008, sem tradução no Brasil), do jornalista e sociólogo argentino Martín Sivak, ajudam a situar a atual crise do país numa rota de sobressaltos de mais de duas décadas. O "chefão" do título é referência ao vocativo preferido de Morales, enquanto atua como padrinho de sindicatos, líderes indígenas e ministros. O livro pincela ainda as relações dele com o presidente Lula. Sivak acompanhou Morales em vários momentos nos últimos 13 anos e com ele viajou à África, à Europa e aos recantos do interior do país. À simpatia ao retratado e às vantagens de acesso tenta contrapor, no livro e à Folha, o olhar do sociólogo. Diz que o presidente errou no manejo político da Constituinte, que "ficou presa no conflito" com o rico departamento de Santa Cruz. Ao impor a aprovação da Carta por maioria simples, e não a maioria qualificada exigida por lei, fez colar em si a imagem de autoritário ante as classes médias. (FM)

 

FOLHA - O referendo apenas vai reproduzir a divisão política atual como dizem vários analistas?
MARTÍN SIVAK
- Não concordo que o referendo seja apenas uma fotografia. É um modo de o governo mostrar autoridade. Os próprios líderes de Santa Cruz sabem que o estatuto de autonomia não pode ser aplicado como está. Se Morales obtiver um triunfo, algo como 60%, acordos frágeis entre os dois lados podem ser feitos. Senão, teremos mais radicalização.

FOLHA - No livro, o sr. comenta que integrantes do governo reconhecem que ter ficado contra as autonomias regionais em 2006 foi um erro. Se o presidente tivesse usado menos a "ginástica sindical", o resultado teria sido outro?
SIVAK
- Talvez se Evo tivesse se apropriado dessa demanda das autonomias pudesse ter contido um pouco o conflito. Mas o Oriente [os departamentos de Santa Cruz, Pando, Beni e Tarija] iria se levantar de qualquer modo. Evo confrontou as elites do país. O complicado é que as autonomias não são apenas uma demanda dos oligarcas, é algo que fala às classes médias.

FOLHA - E quanto há de étnico no confronto?
SIVAK
- Há a questão da cor da pele, mas o problema não começa nela. O que provoca a reação são as medidas do governo.

FOLHA - O livro repassa os pontos baixos da relação Morales-Lula, como a ocupação das refinarias da Petrobras pelas Forças Armadas...
SIVAK
- A nacionalização, em 2006, com a ocupação das refinarias pelo Exército, foi a primeira ruptura com Lula. O uso das Forças Armadas não foi um gesto ao exterior, contra o Brasil, foi um gesto às próprias Forças Armadas, para que elas se sentissem parte do processo. Mas, de todo modo, o governo boliviano esperava mais do governo Lula. A relação entre os dois também reflete agendas distintas. O PT chegou ao poder já distante do que era quando foi criado. Não é o caso do MAS.

FOLHA - No livro, Chávez não exerce influência sobre Morales na nacionalização dos hidrocarbonetos. Como é a relação Chávez-Morales?
SIVAK
- É certo que a Venezuela pagou o escritório de advogados em Nova York [contra as empresas petroleiras], mas superestima-se a influência de Chávez. Evo não é um títere. Ele antecipou as nacionalizações a Fidel, não a Chávez. A Bolívia fez nacionalizações antes da Venezuela; o antiamericanismo de Evo é muito mais antigo que o de Chávez.

FOLHA - A Constituinte, uma das bandeiras de Morales, pode tornar-se apenas um punhado de papel?
SIVAK
- A Constituinte não era uma agenda de Evo, era a "agenda de outubro" [da chamada "Guerra do Gás", em outubro de 2003]. Houve vários problemas de manejo político na Constituinte. Um deles é não ter conseguido isolar o Podemos. Daí começou a questão dos dois terços, na qual Evo não retrocedeu. O modo como ele lidou com a Constituinte fez colar na mídia, nas classes médias, a imagem de autoritário.

FOLHA - No livro, o sr. diz que Morales sempre viu a classe média com desconfiança e que não soube manter a adesão de parte dela. Por quê?
SIVAK
- Evo subverteu a fantasia da classe média que pensava que elegendo os bloqueadores [de vias públicas] haveria menos bloqueio, menos incerteza. Evo toma decisões como quando líder sindical, acentua o conflito campo-cidade. Além disso, fez o que qualquer governo progressista faria: redistribuir renda. Talvez a classe média quisesse vê-lo quintuplicando as verbas para as universidades e não criando um benefício para alunos da escola básica.

NA FOLHA ONLINE -
www.folha.com.br/082217
leia a íntegra da entrevista



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