São Paulo, sábado, 10 de setembro de 2005

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ÁSIA

Queixas de camponeses são reflexo do fato de o crescimento das áreas urbanas não ter chegado às regiões rurais do país

Modelo econômico gera protestos na China



No campo, o desenvolvimento econômico continua onde estava havia cem anos, enquanto os custos da saúde se equiparam aos das grandes cidades

Os governos centrais e locais na China têm ampla experiência em enfrentar protestos, especialmente protestos de trabalhadores demitidos

O debate sobre como adaptar o sistema político a esse novo panorama foi deixado para trás e, em nível nacional, vem sendo reprimido por insistência de Hu Jintao

RICHARD MCGREGOR
DO "FINANCIAL TIMES"

Quando Cheng Li, um acadêmico chinês, concluiu recentemente um estudo sobre os 22 líderes mais próximos ao presidente Hu Jintao, descobriu que nenhum deles tinha experiência no ramo de comércio internacional ou finanças. Esse grupo de elite, que responde por ministérios em Pequim e governos provinciais, provém da Liga da Juventude Comunista, há muito uma das bases de poder de Hu, e todos eles têm origens na política rural.
A economia chinesa está mais exposta ao comércio mundial e dependente de reformas em seu sistema financeiro agora do que em qualquer momento da história moderna do país. Mas, na China de Hu, nada é visto como mais precioso do que um líder que conheça o modo de vida de dois terços -ou 800 milhões- dos chineses, em pequenas fazendas familiares e cidadezinhas rurais.
Quando partiu, nesta semana, para a América do Norte -viagem pelo Canadá, México e uma reunião com o presidente norte-americano George W. Bush durante a conferência de cúpula das Nações Unidas-, Hu foi recebido como o líder de uma superpotência em ascensão, e não como homem que se esforça por administrar uma classe baixa dividida e ainda em larga medida rural. No entanto, desde que assumiu a Presidência, no começo de 2003, Hu e Wen Jiabao, seu primeiro-ministro, têm em geral evitado Xangai e as demais florescentes metrópoles e optado por visitar mais o oeste e o nordeste do país, o campo empobrecido e o decadente cinturão da indústria pesada.

China rural
"O ponto forte de Hu não é sua compreensão do mundo exterior, mas da China real, ou seja, da China rural", diz o professor Li, nascido em Xangai mas radicado em Nova York.
Para se diferenciar de seus predecessores, cuja base de poder era Xangai, Hu e Wen visitaram os poços de minas de carvão, participaram de encontros improvisados com trabalhadores migrantes, abraçaram pacientes portadores do HIV e reduziram os impostos sobre a agricultura desde que assumiram.
Essa última decisão, disse o governo com alarde, aboliu um sistema tributário instaurado "mais de 2.000 anos atrás", com as taxas do governo imperial sobre os grãos.
Em resumo, a dupla transformou o reconhecimento das profundas fissuras entre ricos e pobres, costa e interior, cidades e campo, que se iniciou durante o período de expansão acelerada na década que se passou, sob o governo de Jiang Zemin, em uma fixação.
"Nas áreas rurais, o desenvolvimento econômico continua onde estava havia cem anos, enquanto os custos da saúde se equiparam aos das grandes cidades", diz Mao Shoulong, da Universidade Renmin, de Pequim. "Nesse sentido, Hu e Wen enfrentam muitos problemas novos e muitos novos conflitos políticos, o que os força a criar uma espécie diferente de governo."

Protestos
O governo de Hu já teve uma poderosa amostra da espécie de problema que o futuro talvez reserve, com a intensificação dos protestos na China durante os últimos dois anos, quase como se as massas oprimidas estivessem tomando a liderança no mundo e exigindo que suas queixas fossem atendidas.
Os protestos nasceram todos de queixas locais -aldeões protestando contra roubo de terras ou poluição de suas fontes de água; um fazendeiro canceroso incapaz de arcar com o custo de tratamento e que se suicidou com uma bomba em um ônibus; e uma multidão cercando uma delegacia de polícia para exigir que um rico empresário fosse entregue a eles, depois de espancar um cidadão local.
Provas de que a intensificação dos protestos era real e seguia um padrão discernível vieram de Zhou Yongkang, o ministro da Segurança Pública, que alegou recentemente que o número anual de "incidentes de massa" havia subido de cerca de 10 mil uma década atrás para 58 mil em 2003 e 74 mil no ano passado, quando o total de pessoas envolvidas atingiu os 3,6 milhões.
"Esses problemas parecem ser sociais, mas suas origens podem ser ligadas a questões políticas", diz Mao, que não tem esperança de uma solução política no ambiente atual. "Se uma fagulha de incêndio puder deflagrar um tumulto nacional, não há política racional a estabelecer."

Confiança
O invejável histórico econômico do governo de Pequim, anos consecutivos de crescimento acelerado, oferece certa dose de confiança aos seus líderes.
"Esperamos que seja possível manter esse crescimento e rápido desenvolvimento, mas, claro, não rápido demais", diz Zheng Bijian, confidente de Hu e ex-diretor-assistente da escola do Partido Comunista. A posição de Zheng é característica dos líderes de primeiro escalão, que acreditam dispor das ferramentas necessárias a calibrar o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) para que este se mantenha em entre 7% e 9% ao ano, a velocidade necessária a gerar 15 milhões de empregos a cada ano, absorvendo os ingressantes no mercado de trabalho.
Mas essa confiança precisa levar em conta o respeito pela história chinesa, na qual períodos de placidez e prosperidade foram sempre pontuados por violência e levantes.
Os governos centrais e locais na China têm ampla experiência em enfrentar protestos, adquirida nos últimos 20 anos, especialmente protestos de trabalhadores demitidos diante das fábricas levadas à falência sob pressão das reformas de mercado lançadas em 1979. As pessoas que persistem em protestar são sempre tratadas com brutalidade e em geral terminam na cadeia.
A maior parte dos protestos, porém, parece ter sido tratada de maneira mais sutil do que pode parecer quando observados de fora. Em lugar de empregar a violência imediatamente e deter manifestantes arbitrariamente para os silenciar, as autoridades locais empregam métodos que variam da pressão verbal a pequenos pagamentos em dinheiro para convencer as pessoas a voltar para casa.

Internet
A mais recente onda de manifestações quanto a abusos de poder locais é diferente dos protestos pela falência de fábricas -de outro modo importante, os manifestantes cada vez mais se influenciam uns aos outros, ganhando poder por meio de informações trocadas pela internet.
Na aldeia de Taishi, parte da relativamente próspera Província de Guangdong, no sul da China, centenas de aldeões realizaram protestos recentemente contra o confisco de suas terras para um empreendimento imobiliário. Alguns anos atrás, essa teria sido uma questão isolada. Mas uma rede de ativistas democráticos que apóia os protestos em Taishi começou a distribuir e-mails regularmente com informações sobre a campanha e declarações dos moradores. Quando estes começaram uma greve de fome, na semana passada, anunciaram via Internet que "queremos democracia! Queremos justiça. Queremos o domínio da lei! Somos senhores de nosso país e somos livres para escolher o futuro".
De acordo com um comunicado dos ativistas, os protestos em Taishi marcam "o início de uma campanha pela democracia política", para demonstrar os benefícios que a participação local pode propiciar às decisões do governo.
"A posição pacífica e racional dos aldeões assinala a retomada dos métodos não violentos de Gandhi entre os militantes de base chineses", afirmam os ativistas em um outro comunicado.
O início de uma oposição organizada a -ou de um protesto contra- o domínio do Partido Comunista dispara sinais de alerta para as autoridades, mesmo que o governo central tenha, ele próprio, admitido como justas as causas básicas das manifestações. O impulso de Pequim é imputar às autoridades locais a culpa pelos maus tratos a agricultores, e às vezes por bons motivos.
"As grandes decisões tomadas em Pequim usualmente são corretas, mas os funcionários locais muitas vezes distorcem as diretrizes ou simplesmente as ignoram", diz Xue Lan, da Universidade de Pequim.

Corrupção
A corrupção é outro fator significativo. As transações de terras quase invariavelmente enriquecem os funcionários locais, já que eles têm o poder de converter terra agrícola -que não pode ser comprada ou vendida e, portanto, tem baixo valor- em imóveis comerciais, que podem ser negociados em um mercado aberto, o qual propicia grandes lucros.
"Os agricultores têm ativos na forma de terra, mas não têm direito a negociá-los", diz Mao.
Embora um mercado privado de habitação venha florescendo nas cidades há quase uma década, com o encorajamento do governo, Pequim se recusa a permitir que as terras agrícolas sejam negociadas da mesma maneira. O governo teme que os fazendeiros rapidamente vendam suas terras, e eles não teriam estrutura de sustentação caso deixassem o campo para procurar emprego nas cidades. Manter as terras rurais fora do mercado equivale, na prática, a sustentar uma rede de segurança social para os agricultores.
Mas, apesar de todos os casos de abuso de poder, os funcionários locais também são prisioneiros do modelo chinês de desenvolvimento, sob o qual as regiões são classificadas economicamente com base na rapidez da expansão do PIB local. De acordo com Andy Xie, da Morgan Stanley, em Hong Kong, a maneira mais fácil de criar crescimento é por meio de investimentos fixos. "Portanto os incentivos políticos são pesadamente distorcidos em favor do investimento fixo".
Funcionários locais que tentam obter alto crescimento do PIB usualmente ajudam-no e se beneficiam do confisco de terras agrícolas, que custa barato, e não fiscalizam as fábricas poluentes por medo de que as empresas decidam se mudar e levar com elas os empregos gerados.
O investimento superior à média registrado na China (responsável por metade do crescimento do PIB nos últimos dois anos) deixou de ser apenas uma questão doméstica. Como um dos principais propelentes da alta recente nas exportações, causando preocupação na Europa e nos Estados Unidos, os incentivos econômicos internos chineses ganharam dimensões mundiais.
"Quando existe capacidade excedente, é inevitável que o governo promova exportações mantendo a moeda baixa nos mercados de câmbio ou oferecendo incentivos financeiros", disse Xie. "Mas, quando o crescimento nas exportações absorve a capacidade excedente, o mesmo incentivo político pode levar à criação de outra onda de capacidade excessiva." Os manifestantes locais, portanto, não estão contestando apenas o governo dos funcionários locais do partido, o que bastaria para gerar represálias graves. Também estão combatendo um modelo de desenvolvimento econômico que varre tudo que encontrar em seu caminho, nas áreas urbanas e no campo.

Equilíbrio
Um debate sobre a necessidade de reequilibrar a economia chinesa -do investimento para o consumo, dos setores que consomem energia intensamente a um modelo mais ecológico e da criação de riqueza a uma distribuição mais justa- está em curso há mais de um ano. Ao mesmo tempo, administrar o país e a economia se tornou mais complexo devido ao surgimento de novos grupos de interesse, entre os quais investidores estrangeiros, que exigem que suas preocupações sejam levadas em conta.
O debate sobre como adaptar o sistema político a esse novo panorama foi deixado para trás e, em nível nacional, vem sendo reprimido por insistência de Hu. Instituições como os tribunais vêm sendo mantidas sob o controle do partido.
Organizações não governamentais, quase todas ecológicas ou de combate à Aids, existem em limbo jurídico, por medo de que possam se desenvolver como entidades políticas independentes.
Como resultado, diz Xue, da Universidade de Pequim, quando chega a hora de protestar, "não existem muitas regras" sobre como enfrentar esses problemas. "É preciso mais sensibilidade; as diretrizes deveriam vir de baixo para cima. E o atual governo com certeza presta mais atenção às pessoas que estão por baixo", diz. "Mas o problema é que existem vozes demais."
Tony Blair declarou depois de sua visita a Pequim que o crescimento econômico e a modernização da China, exemplificados pelos 100 milhões de usuários de internet registrados no país, criaram um "ímpeto impossível de deter". Se o primeiro-ministro britânico tivesse passado sua estadia não nas reluzentes cidades mas no campo, e visto os protestos, talvez sua opinião sobre o país ganhasse ainda mais veemência.
Hu e seus partidários, no entanto, chegaram à conclusão oposta. Para eles, tanto o sucesso da China nas áreas costeiras quanto os distúrbios em muitas comunidades rurais são prova da necessidade de "estabilidade" que só um regime de partido único é capaz de fornecer.

Tradução de Paulo Migliacci


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