São Paulo, quarta-feira, 10 de outubro de 2001

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ONGs têm dificuldades para distribuir alimentos

ENVIADO ESPECIAL A FAYZABAD

Domenic Mac Sorley trava uma angustiante batalha contra o tempo. Diretor do programa afegão da Concern, entidade não-governamental irlandesa, faz três semanas que não consegue transportar comida para cerca de 150 mil pessoas que passam fome no norte do Afeganistão.
A ameaça de ataques americanos desde 11 de setembro, dia dos atentados contra os EUA, tornou mais difícil entrar no país e paralisou a distribuição. O início da retaliação pode piorar ainda mais esse quadro.
O governo do Tadjiquistão, país de onde os caminhões da Concern viajam para o norte afegão, e os militares russos, que controlam a fronteira, complicaram ainda mais a confusa e ineficiente burocracia local.
Após um périplo de dias e horas de espera por escritórios e a embaixada da Aliança do Norte na capital tadjique (Dushanbe), Domenic voou na segunda-feira à tarde em um velho avião militar soviético para Fayzabad com uma boa notícia. Obteve as autorizações necessárias, mas ainda temia que a operação militar americana pudesse criar novos embaraços.
Hoje ou amanhã, cerca de 75 afegãos que trabalham na ponta da linha para a Concern deverão receber pelo menos 60 toneladas de alimentos para distribuir em um mês. Em caminhões, a carga vem do Tadjiquistão e do Cazaquistão, ex-repúblicas soviéticas da Ásia central. A Concern distribui alimentos doados pelo WFP -sigla em inglês do Programa Mundial de Comida da ONU (Organização das Nações Unidas).
"Sessenta toneladas é pouco, mas é o possível nessas condições. O inverno está se aproximando, tudo pode ficar mais difícil e temos que tentar trazer mais alimentos. Outras entidades de ajuda têm enfrentando os mesmos problemas", diz Domenic, um comunicativo e simpático irlandês de 45 anos, que há mais de 20 anos trabalha mundo afora em programas desse tipo.
Em situações "normais", a entidade distribui no local entre 200 e 250 toneladas de comida -uma média de 6 kg por família, quantia que funciona como complemento aos alimentos que os próprios assistidos obtêm com sua agricultura de subsistência.
Apesar da vista linda, com montanhas cor de areia, o norte do Afeganistão é seco e ruim para a agricultura, mas há vales com rios onde plantam-se legumes, frutas, trigo, girassol e algum milho.
A Concern também distribui água, cobertores, tendas, material básico de limpeza, fogões, além de organizar frentes de trabalho para abrir estradas. No inverno, vilas inteiras ficam isoladas. A Concern constrói estradas e melhora as já existentes para que populações não fiquem ilhadas.

Veneno
Outro trabalho fundamental é conscientizar os assistidos a não comer um pão feito de farinha de trigo misturada a raízes tóxicas da região. Nos casos mais desesperadores, há quem coma só a farinha dessas plantas. Crianças e idosos morreram no inverno passado alimentando-se assim. Homens e mulheres saudáveis podem ter graves problemas digestivos. A diarréia é um dos menores deles. Nas ruas de Fayzabad, é possível encontrar esse tipo de pão, que tem um gosto amargo e uma textura mais dura do que a normal.
Com 3.000 funcionários na Irlanda e 120 espalhados por 26 países, a Concern habitualmente contrata mão-de-obra local para executar o trabalho de campo. Domenic estava no Paquistão, onde a entidade socorre refugiados nas cidades de Peshawar e de Quetta, e deve ficar duas semanas no norte do Afeganistão para tentar reorganizar minimamente o programa.
"Os bombardeios devem dificultar ainda mais o nosso trabalho, aumentando o número de pessoas que precisarão de ajuda e criando mais embaraços burocráticos", afirma Domenic, que se mostra cético em relação à eficiência da "guerra contra o terror" dos Estados Unidos.
Para o diretor da Concern, os bombardeios vão produzir pouco resultado em relação aos terroristas, mas poderão apear o Taleban do poder. "Se o Taleban cair, Bin Laden não ficará no Afeganistão. O objetivo principal dos bombardeios talvez não venha a ser atingido", opina Domenic, que diz que já está falando demais de geopolítica e brinca que deve parar de dar atenção a jornalistas e cuidar de levar assistência a quem precisa. (KENNEDY ALENCAR)


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